se não chegar a nos perceber:
Não saberia dizer se
as próximas semanas passaram velozes ou se arrastaram, mas quando se deu conta
de sua posição eram onze e meia da noite e havia o barulho de algum cão vadio
revirando latas de lixo. Terminava seu tormento semanal como máquina: insensibilizado,
especializado, fechando a ultima das seções da coroa externa. Faltando espaço
nas costas, o desenho invadia as costelas pelas laterais do corpo. A
cicatrização era rápida e agressiva, o misto de pintura e entalhe caminhando debaixo
da pele.
Terminou de preencher
com a tinta estranha o ultimo glifo. Inspirou profunda e lentamente. Expirou a
bruma pesada da angústia, sentindo seu braço fraquejar e seus olhos pesarem.
Tonteou e voltou a si algumas vezes. Colocou a máquina sobre a mesa e apoiou a
testa na lateral da maca, afastando o resto do corpo com o deslizar da cadeira.
Gregório já havia
cogitado fechar o estúdio e arrumar um emprego decente diversas vezes. Pouco
antes do amaldiçoado dia em que aquele homem cruzou a porta de vidro, chegou a
colocar as contas na ponta do lápis para procurar outras possibilidades. Mas
onde diabos iriam contratá-lo? Não alguém como ele.
Apesar da profissão,
Gregório tinha poucas tatuagens. Se colocasse uma roupa chique sobraria pouco o
que questionar de sua seriedade. Porém quando lhe perguntassem sobre sua
experiência profissional diria “trabalhei como tatuador durante vinte e um
anos, desde os dezessete” e quando perguntassem o que mais, diria “trabalhei
como balconista da biblioteca municipal durante dois anos, dos quinze aos
dezessete”.
Seriam camadas e
camadas de falsidade entre dentes – nojo e pena revirando-se por dentro,
deixando escapar apenas um sorriso sarcástico, coberto por um sorriso
condescendente, coberto pelo melhor sorriso impenetrável tal qual um jogador de
pôquer. Entraremos em contato. Tapa nas costas. Escolta à saída. Aperto de mão.
Depois nada.
Gregório acordou de
madrugada quando, em sonho ou memória, escutou gritos afogados e o ranger de
dentes. Suava. Sentou-se, o lençol empapado descolando de suas costas.
Perguntou se fora ele a gritar durante o sono.
Cenas desatadas de um
pesadelo recobriram seus olhos no breu do quarto. Sangue, aço, unhas, lodo,
plástico. Um sombra sádica da cor da angústia, densa como noite líquida,
invasiva e sufocante. Respirava mal. Abriu a janela.
A cidade dormia. Seu
lado da cidade não tinha muitas opções a não ser o aconchego das camas quando
chegava a noite. Ao longe, o halo de luz que recobria o centro competia com um
céu nublado e cinzento, os prédios desregulando o horizonte em uma bocarra de
dentes tortos.
Desceu as escadas se
orientando com uma mão calejada na parede. Passou pelo corredor e entrou no
banheiro, tateando pelo interruptor. Acendeu a luz, e foi ofuscado pela
iluminação repentina, a vista entrecortada pelos borrões brancos. Aguardou um
segundo, abriu o armário embutido no espelho e pensou ouvir um tinido estranho.
Encarou a si mesmo
durante algum tempo. Suas olheiras estavam fundas, sua barba por fazer.
Qualquer majestade que um dia tivera, qualquer juventude, parecia ter se
esvaído.
Seu rosto, percebeu,
não tinha cicatrizes. Não tinha cicatrizes gritantes, apesar de todas as brigas
em bares, de todas as surras quando criança. Mas ainda assim, seu rosto exibia
o tipo de marca suave, de erosão irreverente, que extinguia qualquer dúvida.
Ligou a água da pia e
abaixou-se para as mãos cheias. Quando abriu os olhos viu algo através do
gotejar das sobrancelhas. Uma familiar chave cor de cobre, esverdeada com o
tempo, balançava na água corrente, presa no ralo.
Estendeu os dedos
dormentes e pegou-a, examinando mais de perto.
A fechadura abriu-se
com um clique, a porta com um ranger incômodo. Poeira e panos. As janelas
estavam fechadas, as cortinas frustrando a luz vinda da rua. Um cheiro ocre
levantava-se das tábuas do chão, manchadas de tinta.
Havia telas cobertas
com panos que um dia foram brancos, esquecidas. Um cavalete grande sustentava
uma tela parcialmente pintada de preto. Gregório sabia que se examinada com
cuidado e sob a luz a tinta na realidade exibia um azul profundo. Sua mistura
particular.
Tentou acender as
luzes. Uma segunda, terceira vez. A lâmpada estava queimada.
Avançou para a tela
no cavalete e tocou-a com a ponta do dedo, sentindo a textura do tecido e da
tinta seca. Virou-se para o lado e puxou o pano que cobria uma das telas encostadas
na parede. Olhou-a por um segundo.
Ficou impressionado
com a paciência que tinha quando era mais novo. Cada estrela da composição
parecia diferente da outra, e todas formavam sempre movimentos em ondas,
perfeitamente discerníveis sob o fundo escuro.
Sabia que aquele
tempo havia passado, junto com os livros de astronomia. Conformara-se com o
fato de que não poderia ser um astronauta. Aproveitou-se de seu olho que
deixava pouco escapar e de sua mão firme e decidiu criar o espaço ao invés de
visitá-lo.
Da tela para a pele
fora uma questão de necessidade e perspicácia. Então, uma década e meia atrás,
deixou de cultivar aquela paciência de graça.
Dúvidas se instalaram
aquela noite, mudas. Gregório saiu do quarto, trancou a porta barulhenta e
subiu as escadas.
Colocou a chave em
cima do criado-mudo e voltou a dormir.
O sino da porta tocou
e o homem que entrou parecia ter tomado um bom café da manhã. O advogado se
esforçava para andar com a postura correta, mas seus ombros ainda insistiam no
desânimo. De uma forma ou de outra parecia, se não melhor, inspirado.
Tirou o paletó escuro
amarrotado e pendurou num gancho na parede do estúdio enquanto Gregório preparava
o material, apreensivo, uma garrafa de uísque barato com um rótulo vermelho
gritava por atenção entre os materiais. Não precisou se virar para ver que o
advogado sufocou um riso ao notá-la.
- Não vou beber.
- Talvez eu vá.
- Você não vai me
tatuar bêbado.
- Talvez eu vá.
Silêncio.
- Já estou na
ilegalidade usando essa tinta maluca. Não tente me recriminar por falta de
profissionalismo.
Mais silêncio.
- É preciso muito
mais que um copo de uísque pra me deixar bêbado.
O advogado levantou
uma sobrancelha.
- Deixe a maldita
garrafa aí. Não está nem aberta.
A sessão seguiu, o
advogado ainda calado, ainda se contraindo, ainda suando. Os dentes ainda
trincavam, mas a dor parecia mais suportável. Talvez ele simplesmente tivesse
se acostumado.
Enquanto isso, o
desenho seguia tomando o lugar da pele, indo e vindo. Ao seguir as linhas por
vezes se sentia fazendo uma costura ao invés de uma tatuagem.
- Você ganhou cor.
Está melhor daquela doença?
- Ela está
terminando.
Fechou naquele dia
mais duas divisões do círculo interno. Gregório se acostumava com a as formas e
distâncias entre os ícones, precisando de cada vez menos consultas. Símbolos se
repetiam e giravam, aumentavam e diminuíam, mas uma lógica cega era perceptível
nas marcas estranhas.
Como a das estrelas.
Terminou mais rápido
naquele dia, não sabia dizer se pela expertise ou pelo medo de passar novamente
pelo que havia passado semanas atrás.
A coroa interna era
menor, aliviou-se.
Quando vamos marcar a
próxima? – perguntou Gregório, menos tenso do que antes.
Seu cliente demorou a
responder, mas já estava ficando acostumado com os silêncios quase
constrangedores. Esperou paciente que se sentasse, abotoasse a camisa em seu
ritual.
O advogado levantou
os olhos e examinou o desenho. Depois virou-se para Gregório, ainda demorando-se
em escolher as palavras.
- Acho que você
precisa, de uma pausa.
- Como é? – a resposta
saiu tão prontamente que Gregório se surpreendeu consigo mesmo.
- Acho que precisa de
uma pausa. Pra colocar a cabeça no lugar, respirar um pouco. – dizia, mas a
Gregório parecia não prestar atenção.
- Uma pausa? –
perguntou incrédulo, depois de alguns momentos de silêncio – Isso é sério?
- Gastar o dinheiro
que lhe paguei. – respondeu com um sorriso leve e uma sobrancelha arqueada que
fazia da sugestão uma pergunta.
- Não. – pausou.
O advogado olhava com
a condescendência que se olha para uma criança. Como diabos ele esperava que
Gregório aceitasse essa sugestão? Ainda que a dor parecesse ter diminuído, seu
cliente ainda fincava as unhas no encosto, ainda suava e ainda ardia em febre.
- Não, de jeito
nenhum. Demorei muito tempo pra me acostumar com a sua tara de sentir dor e
agora você quer me dar tempo pra desacostumar? O cacete. Vamos marcar semana
que vem.
- Olhe, eu entendo
que queira acabar isso logo. Eu também quero. Imagino que tenha reparado
enquanto eu trincava os dentes na sua maca. Mas não quero que seja desleixado
por causa disso. – Gregório fez menção de interrompê-lo, mas seu cliente pausou
antes que pudesse e ele reconsiderou.
– Sei o que você está
pensando. Que é muito bom e que pode terminar esse trecho final em mais duas
sessões mesmo que esteja com um braço quebrado e alcoolizado. Eu acredito em
você. Mas preciso de algo que você não está em condições de dar: concentração.
Você sabe tão bem quanto eu que está cansado. Então aqui está minha proposta: –
gesticulou com as mãos – descanse pelo menos duas semanas. Quando sentir que
está pronto, me ligue. Como também não tenho muito tempo, caso eu ache que está
folgando demais vou te procurar. De acordo? – concluiu, estendendo sua mão como
da primeira vez que se encontraram.
Gregório hesitou, sua
boca abriu e fechou algumas vezes procurando o que dizer, mas ele sabia que seu
cliente estava certo. Apertou sua mão e jurou que seria a ultima vez que
entraria num acordo com aquele homem.
se eu te contar o que vejo, pode me dizer o que é verdade?:
No primeiro dia uma
moça entrou no estúdio. Vestia roupas leves, sua saia e cabelo curtos realçavam
seus quadrís. Gregório acompanhou enquanto ela se aproximava do balcão e olhava
as fotografias nas paredes. Aguardou um cumprimento, mas desistiu.
- Boa tarde. – disse.
- Boa tarde. – respondeu, ainda imersa nos desenhos da parede. Virou-se
para o balcão. – Eu quero tatuar meu pé. Estava pensando em estrelas.
Por um segundo, animou-se.
- Estrelas?
- Sim. Umas três.
Seu ânimou desinflou,
ao perceber que, pela quantidade, não imaginavam mesmo tipo de estrelas.
Aceitou o negócio e terminou em uma hora, um tanto triste.
Quando ela
despediu-se, satisfeita, Gregório acompanhou sua caminhada até o final da rua
acendendo um cigarro. Ao entrar de volta no estúdio o som do sino da porta lhe
deu uma rápida vertigem.
As parades eram
recobertas por vários trabalhos. Escorpiões, chamas e mulheres cobriam braços,
flores e dragões populavam costas. Nesse mundo a pele se tornava cenário de
batalhas, refúgio de fantasmas e demônios orientais, lar de criaturas
fantásticas ou até memorial para coisas que alguém considerava importante.
Mas então Gregório
percebeu que, depois de um tempo, não se lembrava mais das pessoas, não se
deixava contagiar pela arte. Os pedidos se repetiam e o seu traço viciado já
sabia como desenhar tudo aquilo de forma quase mecânica.
Fechou o estúdio mais
cedo e não o abriu durante toda a semana.
A lua se escondia e o
mundo noturno só se revelava para aqueles que esperavam que seus olhos se
acostumassem. Gregório terminava um cigarro nos fundos de seu estúdio
absorvendo o céu com os olhos. O cheiro da fumaça começou lhe incomodar e ele
descartou seu cigarro.
Tirou o celular do
bolso e desviou o olhar com a luz cegante do display.
Circulou pela agenda
passando cegamente por diversos nomes – “Fênix César”, “Fênix Bianca”, “Fênix
Rodrigo”, “Gaivotas Júlia”, os nomes eram de pouca importância e era difícil
lembrar quem era quem – até encontrar o nome certo.
Discou. Aguardou
alguns tons.
- Alô. – atendeu a voz baixa e familiar.
- Sou eu. – respirou
fundo para limpar o cigarro da garganta – Está disponível amanhã?
O cliente demorou-se
um pouco a pensar. Gregório observou a brasa do cigarro ganhar vida com a brisa
e depois de um tempo apagou-a com a sola do sapato.
- Sim, vou estar. Duas horas é bom pra você? – perguntou.
- Ótimo.
Por vezes havia o som
de carros passando, mas Gregório atentava ao céu noturno e pensava como havia
ido parar naquela situação. Depois de mais de vinte anos de experiência, fazia
tempo que não tinha a sensação de estar se preparando para algo.
- Gregório, procure descansar. Faça algo que gosta. Não estou te pagando
bem a toa. Não quero que você esteja estressado quando estiver com uma agulha
nas mãos. – disse, e Gregório refletiu se aquilo era um pedido ou conselho.
- Conselho aceito, Antoni. – respondeu. – Descanse você também.
- Boa noite.
Gregório jogou água
no rosto e enxugou-se com a toalha.
Encarou o velho que
via no espelho. Decidiu que tirar o bigode e a barba seria de alguma ajuda.
Jogou os cigarros no lixo do banheiro e voltou ao quarto sentindo o vento sobre
o rosto.
No criado mudo estava
a chave cor de cobre.
Voltou-se para o
corredor cheio de direção. A passos largos alcançou a porta do estúdio – seu
antigo estúdio onde pintava, não o novo estúdio onde trabalhava.
Abriu a porta
empurrando a pequena estante móvel com suas tintas, a máquina, o gerador e a
garrafa que permanecia fechada e colocou-a perto da janela, abrindo espaço
entre as telas. Decidiu pegar a maca no dia seguinte. Talvez a troca de ambiente
o ajudasse também.
Gregório destrancou
as janelas e puxou com alguma dificuldade. O vento levantou a poeira do quarto
e balançou os panos. Impassível sobre o cavalete, uma das pinturas inacabadas
pesava. Colocou a cadeira frente à janela e procurou o interruptor.
Depois de três
cliques infrutíferos desistiu.
Estava cansado, era
tarde e teria que acordar na manhã seguinte e se submeter a mais horas de sua
tortura coletiva. Seu cliente iria sentir dor, apertar a maca e iria se ver
livre dele.
Mas não iria se ver
livre.
Abriu o uísque e
serviu em um copo. Olhava pela janela e começava a se desprender do estúdio
empoeirado. Tomou um gole e deixou seus olhos transitavam pelas estrelas e
constelações - aries, touro, gêmeos, encontrou Castor e Pollux e pousou-se sobre
o cinturão de Orion.
Parou por um segundo
para considerar a ironia. Há muito tempo, com o pincel em mãos, talvez naquele
mesmo lugar onde se sentava agora, a esperança de Gregório se cansou.
Sentou-se na cadeira.
Ao longe a paisagem construída pelas luzes amareladas de janelas, postes e
estradas era bonita, mas lhe faltava algo. Algo pervasivo, mas quase
imperceptível ao olho nú. Algo que exigia crença e ar nos pulmões e que era
mais fácil de enxergar quando o céu era certo. Quando se apagava as luzes e a
noite era sem lua. Quando a humanidade parecia tola.
As luzes da cidade
são apenas uma efígie das estrelas no céu.
Gregório entregou-se
ao encosto da cadeira e ao sono.
e o que acontece com os garotos que se perdem em suas cabeças?:
Ainda estava em seu
estúdio. Sabia.
Era tarde, mesmo sem
relógio, e era escuro mesmo antes de abrir os olhos. A noite era silêncio e
Gregório flutuava e se afogava. Não podia sentir os pés no chão, mas podia
sentir seus pés procurando descalços um pouso. Rodopiava como em valsa e podia
sentir o vento no rosto. Com passos confusos andava para o alto e para os lados
sem saber onde pisaria até pisar.
Atrapalhou-se com o
pé no mogno e quase tombou, mas para onde?
Os olhos estavam abertos
agora e Gregório encontrou a janela de seu estúdio. Mas algo havia mudado,
pensou enquanto as telas pendiam do teto, seus panos a volitar com o movimento
das correntes do mar. E Gregório podia ver pela janela que o horizonte era
infinito e a paisagem impossível enquanto afinava-se novamente em seu corpo.
Olhando para cima viu
as estruturas de luz xadrez dos edifícios da cidade derretendo e se
transformando. Estendeu a mão para tocá-las, mas elas se afastaram e voaram
como elfos para longe. Deu um passo a frente, tomando cuidado para não tropeçar
na moldura baixa da janela, mas perdeu seu chão ao pisar no céu e caiu, se
segurando em um fio. Olhou para baixo, para a imensidão.
Então Gregório
sentiu. Sentiu olhos e o fogo incandescente de Orion.
Viu-se criança,
olhando para o cinturão e procurava Orion em volta, seus braços fortes e suas
pernas ágeis, correndo para a caçada. Mas cansou-se e deixou que sua mente de
criança lembrasse. Quando era pequeno encontrou o resto de Orion, mas não onde
indicavam os livros que faziam com que sua cabeça virasse e virasse. Os livros
inclementes que o faziam levantar do chão e rodar olhando o céu até ficar tonto
e cair novamente.
Os três pontos eram
os olhos. A estrela do centro era sua lanterna, brilhando com o fogo das
estrelas. Não uma lanterna de pilhas, ou uma lamparina. Gregório sabia -
decidiu. A estrela do meio era como o meio de nossos olhos, e lá ficava seu
fogo.
Olhou Orion nos olhos,
e sabia que ele olhava de volta. Ele já tinha visto aqueles olhos em outros
sonhos. Perguntou-se o que ele via. O céu virou e virou novamente em volta de
si mesmo e Gregório não caia mais do que afundava e flutuava enquanto se
fitavam. O fogo cresceu e engoliu os dois enquanto a mão que segurava o fio
puxava e Gregório se enrolava enquanto queimava suas mãos, suas costas, suas
pernas, seu rosto e ele se desfazia em chama e linha. As estrelas sumiam uma a
uma enquanto Orion e o homem encaravam-se como rivais, como velhos amigos, como
pai e filho e pai e nem um nem outro tinha nada mais do que os olhos e o fogo
que queimava e ardia nos sonhos.
Gregório soube que
era pedra, e que o céu era mar e que seu destino era afundar-se nele e deixar
que a corrente o levasse pela via láctea enquanto se entregou e os olhos se
fecharam e restou só o fogo e a noite.
Acordou em brasa no
chão do estúdio, o laranja da alvorada devassando as telas e os panos
espalhados. Gregório sentiu cheiro de ferro e quando abriu os olhos viu o chão
e sua camisa jogada na vertical. Levantou-se do chão e sentiu um fio enrolar-se
em seu braço. A máquina pendia presa em seu braço. Suas costas ardiam e o chão
era tinta preta e sangue.
Uma única tela
permanecia em pé no estúdio – agora terminada e preenchida com a lógica cega
das estrelas.
Gregório foi até o
banheiro sentindo arder suas costas. Abriu a torneira e lavou o rosto com água
fria. Virou-se de costas para o espelho e viu. As estrelas não preenchidas
sobre a tinta preta quase brilhavam. Perguntas surgiram ininterruptas em sua
mente, mas calou-as ao encarar a si mesmo no espelho e lembrar vagamente de seu
sonho já meio esquecido.
Antoni chegaria em
breve.
de estrelas:
Quando o sino da
porta tocou Gregório não se deu ao trabalho de levantar os olhos da folha na
qual rabiscava em cima do balcão. A placa, virada para dentro, dizia “Aberto”.
- Você parece cansado. – disse Antoni.
- Cale a boca. – respondeu Gregório cumprimentando-o com um aperto de
mãos. Segurou com força por um segundo encarando-o nos olhos. – Você sabia que
algo ia acontecer não? – perguntou, e Antoni não respondeu, mas Gregório sabia.
Viu a resposta em seu rosto. - Suba. Vou te tatuar lá em cima hoje. – disse andando
até a porta e passando o trinco.
O sol atingiu seu
pico e voltou a se esconder, o dia dando lugar à noite e à meia-noite, mas
independente das interjeições de dor de Antoni, Gregório continuou em transe e
foco até que terminasse. O centro era único, um desenho grande, mas o costume
fez com que fosse concluído rápido.
Abaixou o braço
cansado e afastou-se anestesiado.
O desenho era
complexo e emaranhado. Os traços se alternavam, hora formando curvas orgânicas,
hora formas geométricas. Motivos se repetiam como letras de algum alfabeto
desconhecido e acompanhavam a simetria ilusória do quadro. A obra seguia uma
estranha hierarquia, com os elementos se agrupando em falso acaso, com cada
parte se ligando à próxima por interseções quase imperceptíveis. Todas elas
circulavam e convergiam para o centro, onde havia um símbolo que ele
classificou como uma mistura entre uma flor de lótus e a cabeça de uma cobra.
Antoni ficou em
silêncio durante alguns longos minutos enquanto Gregório limpava o material.
Respirava fundo, mas não parecia mais tão pálido ou frágil e a tinta não
parecia mais pesar e queimar - não mais que o normal, ao menos.
Gregório andou até a
janela tirando as luvas e jogando-as no lixo. A noite ainda era sem lua.
Depois de fazer o
curativo, levou Antoni até a porta.
- E agora? – perguntou Gregório. Sentia um pequeno vazio em algum lugar.
- Agora tenho um lugar importante para ir... – respondeu.
- E esse sacrifício é todo por esse lugar? – perguntou, mas não esperou
resposta. – Deve ter algo muito importante pra você lá.
- Sim.
Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Antoni tateou os bolsos.
- O resto do pagamento. Não gaste tudo de uma vez. – disse, entregando um
envelope amassado a Gregório. Alguns carros passavam pela rua, mas era tarde e
a maior parte da cidade já dormia.
- É só isso? Você não vai me falar nada sobre o que aconteceu? – perguntou
Gregório. Tinha perguntas e esperava que Antoni tivesse algumas respostas.
- O que aconteceu? – perguntou.
- Eu vi as estrelas nos meus sonhos e elas falaram comigo em seus olhos. E
eu afundei e voei e elas me deram o fogo. Eu acordei no chão do meu estúdio com
uma tela pintada e tinta nas costas e eu não faço idéia de como isso aconteceu.
– respondeu.
- Não tenho nada pra te dizer que você já não saiba. - e Gregório sabia
que era verdade.
O que quer que se seguisse, não seria mais o mesmo de antes e ainda podia ser sentido no ar o peso das perguntas não respondidas e enigmas não solucionados. Aquele cliente tinha sido diferente de todos. Não por afinidade ou pela arte, mas por outros motivos.
O silêncio se instalou novamente e os dois olharam para o céu aproveitando a brisa da noite e se demorando na despedida.
O que quer que se seguisse, não seria mais o mesmo de antes e ainda podia ser sentido no ar o peso das perguntas não respondidas e enigmas não solucionados. Aquele cliente tinha sido diferente de todos. Não por afinidade ou pela arte, mas por outros motivos.
O silêncio se instalou novamente e os dois olharam para o céu aproveitando a brisa da noite e se demorando na despedida.
- Não dá pra ver isso do centro. – disse Antoni.
- Não mesmo. – respondeu Gregório.
Suas perguntas
desapareceram e o céu era, num primeiro olhar, preto e impenetrável. Mas para o
olho treinado e para o coração desperto, Gregório sabia, que quando observado
com cuidado, na luz certa – não as luzes da cidade – o céu negro não era negro.
Era só meia-noite e
azul, a cor secreta que só se revela pra quem acredita e sonha como sonharam
Van Gogh e Saint-Exupéry. Sua cor preferida.
2 comentários:
Muito bom! E BEM diferente do que eu pensava que ia acontecer. Achei muito legal você ter se focado no tatuador.
A parte do meio, então, tá de ler sem parar pra respirar.
Achei fantástico como a primeira parte dá um ar de grandeza externa e complexidade e a segunda termina em algo tão intimista.
Estou obliviado, senhor. Parabéns pela prosa e pela força de vontade.
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