sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
[insônia e retrospectiva]
Demorou a emergir do turbilhão que anda a minha cabeça algo de valor, nesse profético ano de 2012, que pudesse servir de pedra fundamental sobre a qual eu construiria minha retrospectiva. Acho que foi difícil porque o ano de 2012 foi um ano abrasivo que fez de tudo pra me tantalizar (“the closer I get, the further I am...”).
Mas eu seria um mentiroso se dissesse que em 2012 não aprendi nada. E - que o universo continue a conspirar - o ano que eu não aprender nada é um ano em que estarei morto!
Foi um ano de tentativa e erro e tentativa e erro e tentativa e ... bem, má sorte também. Má sorte e uma sensação permanente de esforço inútil, de desânimo, de cansaço. Mas nunca é inútil. Conquistei muitas coisas, reconquistei muitas coisas e estou no meu caminho.
(E foi um ano produtivo pro blog, que mesmo comigo reclamando bicas que estou escrevendo pouco, saí bastante da caverna.)
Há quem me fale em plantar sementes e cuidar pra que elas cresçam - mas a maioria se esquece que também é importante (e cansativo) cavar, e que a recompensa disso não é escancarada e imediata.
Me recordo que em 2009 – ano sujo, ano de facas – eu fechei com um aprendizado simples, mas significativo: resistência. A segurança de que eu sou capaz de aguentar muita porrada. Mas me esqueci que não adianta ser como a pedra, porque a água fura – e há o que fure pessoas.
Se me salta alguma palavra para 2012, essa seria persistência. Não desistir e continuar remando, não importa o que estiver na frente. (“Spiral out. Keep going.”)
Agradeço, do fundo do meu coração, aqueles que me ajudaram. Quando digo ajuda, digo no sentido mais amplo possível. Uma conversa, uma novidade, um pouco de atenção – sim, foi um ano solitário e carente, em parte por culpa minha, e eu não tenho vergonha disso (só um pouquinho).
Beijos e abraços - vocês podem escolher qual dos dois (ou ambos), fiquem à vontade - e um felicíssimo ano novo pra todos.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
[giveaway - natal, ano novo e superstições]
Querido Leitor,
Cortando um pouco a falação egótica usual, venho com uma proposta.
O Natal se aproxima, e eu - assumidamente um animal de símbolos, com uma rebarba significativa de superstição - assumi meus rituais pré-réveil.
Na ânsia de fazer voltar a fluir essa energia estagnada coloquei-me a arrumar as bagunças do meu quarto e revirei meus armários em busca de coisas para me desfazer.
Me deparei com um surto de espírito natalino e - ao invés de jogar tudo fora, como costumo fazer - decidi dividir com o mundo os prazeres (e alguns desprazeres) da minha leitura.
Encontro-me com uma pequena pilha de livros e HQs para me desfazer, e gostaria de saber se algum de vocês está interessado. Segue a lista:
Feliz Natal e um ótimo ano novo :)
Cortando um pouco a falação egótica usual, venho com uma proposta.
O Natal se aproxima, e eu - assumidamente um animal de símbolos, com uma rebarba significativa de superstição - assumi meus rituais pré-réveil.
Na ânsia de fazer voltar a fluir essa energia estagnada coloquei-me a arrumar as bagunças do meu quarto e revirei meus armários em busca de coisas para me desfazer.
Me deparei com um surto de espírito natalino e - ao invés de jogar tudo fora, como costumo fazer - decidi dividir com o mundo os prazeres (e alguns desprazeres) da minha leitura.
Encontro-me com uma pequena pilha de livros e HQs para me desfazer, e gostaria de saber se algum de vocês está interessado. Segue a lista:
O Retrato de Dorian Grey - Oscar WildeParaíso Perdido - John MiltonDivina Comédia - Dante AlighieriPara Além do Bem e do Mal - Friedrich NietzscheViagem ao Centro da Terra - Júlio VerneTales of Mystery and Imagination - Edgar Allan Poe- The Strain - Guillermo Del Toro & Chuck Hogan
A Maldição de Sarnath (Coletânea de Contos) - H.P. LovecraftO Silêncio dos Inocentes - Thomas HarrisAnno Dracula - Kim Newman- Comédias Para se Ler na Escola - Luis Fernando Veríssimo
Novelização Oficial: Titã A.E. - Seteve e Dal Perry
Holy Avenger Volume III: Partes 17 a 24Holy Avenger Volume VI: Especiais 1 a 4
GURPS - Módulo Básico
Maya Character Modeling & Animation: Principles and Practices - Tereza FlaxmanBlender 3D: Guia do Usuário - Allan BritoDesign de Games: Uma abordagem prática - Paul Schuytema
Caso se interesse, pode entrar em contato comigo através do e-mail (dsg.ximenes@gmail.com), ou facebook (http://www.facebook.com/dsg.ximenes). Peço encarecidamente que adicione [LIVROS] antes do título no assunto, pra que eu possa me organizar melhor. Combinados?
Feliz Natal e um ótimo ano novo :)
D. Ximenes
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
[de estrelas (e pedra submersa) - parte 1]
do som ao silêncio:
- Então... me diga, em que ramo milagroso você
trabalha? – tentou quebrar o silêncio desconfortável. O cliente hesitou por
ainda mais alguns segundos, e ele refletiu se este era do tipo que gostava de
sentir a dor.
- Sou advogado. – respondeu, por fim, um pouco
desconfortável com as perfurações iniciais.
- Vão te deixar entrar em um tribunal com uma tattoo desse tamanho?
- Eu sou do tipo que passa o dia no escritório. – deu
uma risada rouca, suas costas pálidas se movendo. Ele quase podia ver as
costelas se separando conforme o ar entrava e saia rapidamente de seus pulmões.
Alguns dias antes os sinos da porta haviam tocado,
fazendo com que ele parasse de olhar para suas anotações tediosamente, depois de
muitos dias. Havia entrado no estúdio usando um terno e carregando uma maleta –
direto do trabalho, assumiu.
- Ouvi dizer que você é o melhor. – o homem disse,
esboçando um sorriso cansado e olhando para a loja vazia, analisando as fotos
empoeiradas espalhadas pelas paredes – Acho que estavam certos.
Seus olhos eram enquadrados por olheiras escuras e
fundas, e quase não se percebia que eram de um azul arranhando o turquesa.
Julgando por seu cabelo e barba, ele não visitava um barbeiro havia pelo menos
um mês.
- Segundo melhor. – deu de ombros – O melhor – disse,
deixando o sarcasmo transparecer - mora do outro lado da cidade e trabalha numa
galeria que é encerada todos os dias.
- Também ouvi dizer que você faz de tudo. – insinuou,
se aproximando da bancada e apoiando sua maleta de couro, arranhada e fosca com
o uso.
Ele franziu o cenho e virou de costas, andando para os
fundos da loja.
- Se é isso que você ouviu, amigo, garanto que estão
enganados. – gesticulou para que o homem saísse – Não volte mais aqui. Não vou
infringir a minha ética só porque um riquinho ouviu falar que sou um garoto de
programa.
- Não me expressei bem. – se apressou o homem de terno
– Por favor, espere.
Ele se virou, ainda com uma carranca e hesitou antes
de caminhar de volta até a bancada. Se deslocando devagar, esperou para ouvir o
resto da conversa fiada.
- Tenho um pedido especial. – Abriu a mala e tirou de
dentro uma pasta, que ele apoiou sobre a tampa. Desprendeu os elásticos e tirou
do interior uma folha dobrada. Segurou as pontas com muito cuidado, e
desdobrou-a.
- Quero que tatue isso nas minhas costas. – o cliente
disse, demostrando uma resolução inesperada, e por um segundo ele pode jurar
que um brilho intenso havia passado por trás do negrume de suas pupilas.
Olhou a vítima de cima abaixo, os olhos carregados de
julgamento, pensando a respeito. Tinha os cabelos escuros e volumosos, mas
ressecados. Era jovem, mas a testa denunciava linhas fundas marcando a fronte.
Os ombros inclinados para frente pesavam. Percebeu as pernas fracas, que
deixavam as calças pendularem esbarrando os tornozelos.
- Isso não vai sair barato... – atacou, pensando como
comerciante - e vai demorar. Ainda por cima se tratando de um “pedido
especial”. – constatou, analisando as linhas do desenho.
- Sou um homem generoso. – respondeu espirituoso,
estendendo o papel e deixando seu braço ceder sobre a bancada. Seus olhos
acompanharam a leve suspensão da folha pelo ar antes dela se acomodar sobre a
superfície.
- Perfeitamente. – inspirou profundamente, pausou por
um segundo e continuou – e qual é o esquema? – perguntou desconfiado, depois de
recobrar a compostura. – Você mencionou o fato de “eu fazer tudo”. Qual é a
jogada?
Algo não se encaixava, e ele tinha um nariz treinado
para transgressores e bandidos, mas estava curioso. Não era todo dia que alguém
cheirando bem entrava na loja com um pedido grande em mãos. As pessoas tinham
medo de sair do aconchego de seus lares para se aventurar pelo subúrbio, muito
menos se tinham opções similares perto de casa.
Mesmo assim, lá estava ele, sua aparência traumatizada
como um veterano de guerra, em roupas sociais e com um relógio caro.
- Em primeiro lugar, vou precisar te orientar. Esse
desenho requer precisão e...
- Não preciso de orientação. – interrompeu, irritado.
O cliente apenas o encarou esperando permissão para terminar. – Me desculpe.
Continue.
- Precisão e razões matemáticas fixas. – completou.
Razões matemáticas? Parecia uma piada, enquanto ele
olhava a folha preenchida com desenhos espalhados a esmo. Não analisou muito a
fundo.
- Vou precisar de compassos e esquadros? – mostrou os
dentes amarelados.
- Talvez. Tudo depende, mas pelo que pesquisei você
tem as mãos firmes e é detalhista. Desde que eu lhe ensine a regra básica, você
vai conseguir se virar. – gesticulou para os desenhos das paredes. – Eu confio
em você.
Um segundo de estranhamento ocupou a sala, mas ele foi
logo quebrado pela descrença e pressa.
- Até aí tudo bem. Qual é o segundo lugar? – Ainda não
vira nada ilegal.
- Eu vou trazer a tinta que você deve usar. – levantou
os olhos do papel e encarou o tatuador – Ela não pode ser misturada com mais
nenhuma.
Houve silêncio, o terno estendeu a mão direita, seus
dedos finos como um contrato, esperando apenas uma assinatura.
Preço dado, ele aceitara, e agora trocavam casos
engraçados por cima do motor barulhento. A pele esticada do advogado parecia
que ia ceder a qualquer momento sob as investidas velozes das agulhas.
- Se você soubesse o número de casos que consumidores
ganham ficaria assustado. – Havia se acostumado com a breve ardência das
agulhas alguns minutos antes e já conseguia conversar. – Algumas pessoas montam
uma pequena fortuna só com esses casos bobos. Direito civil não é nada
comparado com os casos bizarros que passam na mão do pessoal de direitos do
consumidor.
- Eu imagino. Tenho vontade de processar minha
operadora de telefone todos os dias. – riu, condescendente.
- Uma senhora de sessenta anos um dia resolveu medir a
quantidade de refrigerante que tinha vindo na garrafa dela, sabe deus por quê.
Ela descobriu que ao invés de dois litros, tinha um litro e noventa e oito.
Ganhou um processo e ainda forçou a companhia a trocar toda a aparelhagem pra
se certificar que não acontecesse de novo. Fora os danos morais.
- Trabalhar com clientes é difícil, eu vou te contar.
– resmungou – Alguns chegam a dar raiva. Mas eu juro que enforco se algum
cliente meu disser que é operador de telemarketing.
- Telefonia bate recorde no número de processos por
lá. – adicionou.
Ele sangrava pouco e suas veias faziam contornos azuis
debaixo de sua pele. O tatuador forçou os olhos lembrando-se de algo, enquanto
ajeitava o fio da máquina por baixo da perna.
- Um tatuador argentino uma vez perdeu um processo.
- Por quê? – levantou o queixo do apoio, virando
levemente a cabeça.
- O sujeito não foi com a cara do cliente. Discutiram
muito, mas o cara resolveu tatuar mesmo assim. Afinal, ele era o melhor da
cidade.
- Como o seu colega da galeria encerada? – perguntou o
advogado, ironicamente.
- Exatamente. – riu.
A orientação era que ele começasse marcando o diâmetro
de cada círculo concêntrico – isso tudo ainda usando a própria tinta. Ele
demorou a tarde toda, traçando as linhas básicas com um preto aguado, sempre
prestando atenção para não errar as medidas precisas que o cliente exigiu que
ele aplicasse, o que era incômodo – mas ele era um perfeccionista.
- O que aconteceu foi que depois de uma sessão de seis
horas silenciosas e doloridas; já que o safado tinha a mão pesada; o homem foi
se olhar no espelho.
- E aí?
- Bom, eu me esqueci de mencionar que o tatuador era
uma borboleta. O cliente terminou com um caralho do tamanho de uma raquete de
tênis tatuado nas costas. – concluiu, levantando a agulha para não fazer
nenhuma besteira nos contornos enquanto ria.
- Ai... rir dói. – lacrimejava de dor e gargalhadas ao
mesmo tempo – Minhas costas estão ardendo. Espero que você não esteja tatuando
um pinto em mim também. – provocou.
- Pode apostar, amigo. Cartesianamente.
A primeira sessão foi demorada, mas marcaram a segunda
com o intervalo de apenas uma semana. O advogado estava lá novamente, mais
abatido e com os olhos ainda mais fundos, carregando sua maleta.
O homem aguentava cada segundo, mesmo com o corpo
frágil que tinha. Ele ficou surpreso com a resistência. Pensou se não seria
masoquista, mas seus olhos traduziam algo diferente de prazer.
- Deve ser realmente irritante trabalhar com essa
história de divórcio todos os dias. Você usa um anel, não é casado? – observou
o laço prateado que envolvia o dedo anular do cliente.
- Não. – respondeu, sem se prolongar. A dor pelo
estresse constante das camadas superficiais da pele começava a tomar espaço, fazendo
as frases mais curtas e os segundos mais longos.
- Não sente falta? Um homem deveria ter filhos, pra
continuar seu legado, ou é o que dizem por aí... – tentou parecer inteligente.
Ele puxou um pouco mais de tinta com a ponta da máquina.
- Você tem filhos? – reverteu, mas franziu a testa e
trincou os dentes por um segundo entre as palavras.
- Não. – respondeu, voltando a injetar a tinta sob a
pele do cliente – Meu estilo de vida não me dá segurança o suficiente pra
tentar algo assim. – continuou, quase na metade do volume.
- Então você me entende.
Ele pôde ver suas bochechas se contraindo num sorriso
leve.
Na semana seguinte continuaram de onde tinham parado,
subdividindo as coroas em áreas menores, o que era consideravelmente mais
simples, ainda que trabalhoso. Nada se compararia com a precisão cirúrgica que
as coroas circulares haviam exigido nas sessões anteriores.
- Você não troca de roupa? – perguntou o tatuador. O
advogado riu, sua mão frouxa na alça da valise que parecia flutuar.
- Prefere homens com roupas casuais?
- Que seja. Só não venha fedendo pra cá. Tenho que
ficar sentindo seu cheiro a tarde toda. – deu de ombros.
Sentaram-se e ele continuou a esquematizar, linha por
linha. Cada novo traço pedia uma nova consulta na referência que o cliente
havia trazido, agora cheia de anotações e rabiscos em caneta azul, mostrando
medidas e hierarquias. A forma geral da tatuagem começava a se deixar notar,
mas ainda timidamente, quase se camuflando junto às veias aparentes.
- Você já tinha essa ideia desde pequeno? Ser
tatuador?
- Quando eu era pequeno queria ser astronauta. Meu pai
não gostava nada da idéia. Dizia que no máximo eu ia me juntar aos chimpanzés
na galeria de animais que foram atirados no espaço. Na verdade ele não
acreditava que o homem tinha pisado na lua. Quando comecei a estudar astronomia
ele me deu uma surra e jogou os livros que eu tinha alugado fora. – fez uma
pausa para conferir a referência – Depois outra pela multa da biblioteca. –
concluiu, com uma risada seca.
- Que história triste.
- Sério, não precisa ter pena. O velho já morreu faz
tempo.
- Mas você ainda está aqui, não está?
A pergunta pendurou-se no ar, esperando por uma
resposta que não veio. Suas entranhas fizeram um movimento familiar, mas
incômodo. Engoliu seco. Fez questão de pesar um pouquinho mais a mão nos traços
depois dela.
Naquela noite ele sonhou com lâmpadas amarelas,
sarjetas e sandálias.
Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, e as
entradas não o abandonavam nunca. Tinha manchas amareladas nos dedos e parecia
ser muito mais velho do que realmente era.
Olhou no fundo dos olhos cor de mel refletidos no
espelho e prometeu que ficaria de bico fechado durante a sessão. Aquele homem
fraco e cansado falava coisas estranhas que o jogavam para cantos escuros que
ele não gostava de visitar em sua mente. Ele conseguia ler cada pensamento
desagradável de Gregório, até mesmo aqueles que ele deixava escapar nos
momentos fugazes em que os afugentava como fantasmas de uma vida passada.
Ou então, ele estava finalmente ficando maluco.
Ouviu o sino da porta tocar, lavou o rosto e caminhou
para atender.
há um abismo entre o que você vê e o que deveria estar
vendo:
- Eu trouxe a tinta. – disse o cliente, carregando uma
sacola de supermercado.
Ele estava tão abatido que Gregório notou o volume
dentro da sacola antes das suas olheiras fundas. Parou por um segundo
analisando seu rosto antes de falar qualquer coisa.
- Comprou agora ali na panificação? – tentou
distrair-se das covas fundas que marcavam suas bochechas. Ele não respondeu.
Seguiu sua marcha trôpega para dentro do estúdio,
colocou a sacola sobre uma pequena mesa de canto e se jogou na maca, de bruços,
fazendo um estalo abafado, seu rosto na direção da parede. Levantou o braço
magro e fez sinal para que Gregório viesse logo, sua respiração lenta e pesada.
Parou, apoiando-se com a mão no arco da porta,
refletindo. Olhou para a carcaça em seu estúdio, voltou-se para o saco plástico
- a semelhança era perturbadora.
Olhou o conteúdo: oito vidros diferentes – alguns com
aparência de remédios, outros de corante e um que parecia um pequeno pote de
tinta guache – cheios com tinta preta. Pegou-a pela alça e carregou até perto
de suas máquinas. Começou a preparar o material, em silêncio.
Ligou a fonte e absorveu a tinta com as agulhas.
Testou o motor. Parou.
- Tem certeza disso? Não é qualquer coisa que vai
ficar na sua pele, sem contar que você pode ter uma alergia séria.
- Eu sei. – suas palavras compostas de súplica e
comando – Vá em frente.
Não ousou questionar.
Olhou para a primeira sessão, que começava no topo à
esquerda, invadindo parte do ombro e do pescoço. Olhou para a referência,
procurou a primeira forma, ligou a máquina e levou a agulha à pele.
A sessão foi difícil. Teve mais cuidado do que nunca
antes, como se o corpo do advogado fosse rasgar como uma folha de papel.
Respirava fundo e percebeu que não era o único.
Era tão pouco sangue que quase se esquecia de limpar.
A nova tinta trouxe uma nova dor. O cliente trincava os dentes, suava frio,
tremia às vezes.
Cada pequeno símbolo marcado na pele adicionava uma
nova camada de febre. Ele fez uma pausa, sem que o homem pedisse.
- Não pare. – sua voz era um sopro.
- Tem certeza?
- Não pare até terminar essa parte.
- Não posso te anestesiar, mas tenho um pouco de
vodka.
- Não.
- Você é masoquista? – não se conformou.
- Não. – inspirou. Expirou: - Continue.
Gregório obedeceu. Suas pernas bambas de nervosismo,
seus braços firmes de perfeccionismo. Sentiu-se sádico, imundo. Aquela sessão
tornou-se uma tortura particular. Mas não podia parar.
Ele sentiu pena, raiva. O temeu, invejou e admirou.
Cada emoção ardia, mas ele não ousou parar.
O tempo se arrastou, mas a sessão teve seu fim. Gregório
fez o curativo. O advogado parecia dormir, olhos fechados, a respiração pesada.
Era meia noite - dez horas seguidas em baixo da agulha. A barriga de Gregório
roncou.
- Está com fome?
A resposta demorou.
- Sim.
- Não tenho nada aqui, mas podemos sair até a esquina.
- Ótimo. Me dê um minuto.
Gregório organizou seu material. Retirou as luvas, a
máscara, dobrou-as com cuidado, jogou-as na lixeira. Retirou o saco de lixo,
fez um laço e foi até os fundos desfazer-se. Perguntou-se por um segundo se
aquilo poderia ser considerado lixo cirúrgico. Acendeu um cigarro. Teve
dificuldade – suas mãos tremiam. Estava aéreo.
Quando voltou o advogado estava sentado na maca, sua
respiração ainda pesada, abotoando a camisa. Dobrou a manga expondo os braços
finos.
Andaram para fora da loja, Gregório apagando as luzes
no percurso. Trancou a porta. Começaram a caminhar.
- Conheço um hambúrguer que fica aberto até as três.
- Não posso comer carne.
Gregório ficou frustrado, depois fez a pergunta que
estava evitando havia dias.
- Está doente?
- Pode-se dizer que sim.
A segunda pergunta - engasgou antes que falasse e
decidiu tragá-la junto à fumaça do cigarro.
- Tem uma lanchonete aberta, mas fica um pouco mais
longe. Devem vender algo sem carne.
- Perfeito.
Caminharam em silêncio por algumas quadras. Comeram
sem conversar. O advogado agradeceu, se despediram e seguiram caminhos opostos.
Gregório sentiu o peso do mundo sair de suas costas.
Mirou o céu.
O cinturão brilhava como pérolas no fundo de um lago
escuro.
Tinha a respiração curta e acelerada, suava como se
ardesse em um braseiro. De quando em quando fincava os dedos no pano da maca –
Gregório não ousava pedir que ele não estragasse o forro.
A dor parecia ter piorado. Seu cliente também – as
feridas da tinta estavam inchadas e vermelhas além do ponto de entrada. O corpo
parecia tentar expulsar o invasor, reagindo com alergias, dores, inchaços, ou
talvez a tinta, por ironia, como uma praga, espalhasse aquela marca de fogo e
febre.
Gregório reparou nos curativos dos dedos, na expressão
torturada, nos dentes brigando por espaço na mordida violenta. Não sabia mais o
que eram lágrimas e o que era suor. Nunca havia passado por nada igual.
Depois de três espasmos, Gregório parou de procurar
motivos para continuar. Tirou o pé do pedal. Jogou os braços para trás e recuou
para o encosto. Não foi sua intenção, mas o tamanho da repulsa fez com que as
rodinhas da cadeira a movessem para trás, parando vagarosamente.
Alguns segundos se passaram dentro de sua cabeça em
total silêncio.
- O que está fazendo? – perguntou o advogado.
- Não posso continuar. Volte daqui a uma semana,
quando tiver se recuperado. – disse entre suspiros.
- Não. Continue.
- Você está passando mal, ardendo em febre, já ralou
os dedos de tanto fincar as unhas na minha maca. Descanse um pouco, se vista e
vá pra casa.
- Não importa. Continue. – tentou aumentar o tom, mas
teve a fala cortada por uma expiração involuntária.
- Se eu continuar você vai desmaiar. – disse. Respirou
fundo, tirou uma luva e levou a mão à fronte. – Não acredito que estou tentando
argumentar. Não existe nada mais óbvio para mim e para você: não dá pra
continuar.
Apertou os olhos com as pontas dos dedos, relaxando o
rosto e voltou a olhar o cliente.
Estava sentado na maca, as mãos agarradas no assento.
O rosto fino e pálido, os olhos azuis apontados como armas.
- Volte e continue. – ganhou força quando se sentou.
Gregório pausou antes de responder e pode ver que algo havia mudado. O ar
estava pesado o estúdio parecia encolher.
- Não. Você é maluco. Vá pra casa. – sua voz tremia.
- Eu estou te pagando adiantado. Você concordou com os
termos quando eu apareci aqui pela primeira vez. – apelou para o orgulho
profissional.
- Não importa. Você não disse que a sua tinta levava
veneno de vespa ou sei lá o que diabos. Nem quero saber.
- Você apertou minha mão. – não piscava.
- E você apertou a minha. Devia ter repensado quais
detalhes do seu serviço especial você ia revelar antes de fechar negócio.
- É seu dever continuar. – retesava as pernas, seus
pés se dobrando para cima e para baixo, empoleirado, num movimento maníaco.
- Você é um tarado e está me dando medo. Vá pra casa e
reze para eu decidir que vou continuar a tatuagem da próxima vez que você vier.
A gárgula se levantou e alcançou o tatuador em dois
passos, restringindo seus ombros com as palmas escorregadias. Gregório deu um
pulo curto, o peso do homem impedindo que se movesse. Seus olhos, globos de luz
turquesa, engolindo tudo ao redor em uma afronta perfurante.
- Medo? – perguntou, um riso engasgado subindo-lhe a
garganta arranhada. Gregório segurava a cadeira com uma das mãos. Os dedos da
outra se moviam velozes pela palma escorregadia. – Você acha que entende algo
de medo? Acha que apanhar do seu pai era ruim? Acha que isso é algum tipo de
piada? Que eu tenho cara de quem gosta de pagar pra sentir dor e sangrar?
Agachou-se sem afrouxar as mãos restritivas e inclinou
a cabeça como uma ave psicótica.
- Pense de novo. – sua face avançou um centímetro.
Gotas de sangue escorriam pelas suas costas e caiam no chão com o súbito
aumento de pressão. – Você apertou minha mão. Isso não foi só um acordo verbal.
Foi uma troca de confiança. Caso contrário eu não teria nem começado a me
tatuar com você. – soltou as garras dos ombros de Gregório. As safiras mudaram
de expressão. Seu rosto se contraiu numa mascara de desesperança e morte. – Por
favor. – seus joelhos tremeram e ele se
apoiou com as mãos. – Por favor, continue.
Gregório saiu de seu transe, a adrenalina ainda
alterando sua audição, nublando os sons mais graves. Seus ouvidos zuniram num
tom característico – o de perder uma freqüência auditiva depois de ser golpeado
com força na lateral da cabeça. Lembrou-se de seu pai e levou a mão esquerda ao
rosto. Sobrevivera.
Tomou ciência da figura ainda agachada em sua frente,
soluçando. Teve uma percepção perturbadora. Ele não sobreviveria – os dedos de
sua mão direita se encontraram vagarosamente em um punho sólido, sua testa
franziu. Num vulto, os nós de seus dedos encontraram o maxilar de seu cliente
num estalo surdo e ele caiu no chão de bruços, a boca sangrando – ele não
sobreviveria. Não sem o seu trabalho.
Respirou fundo. Levantou-se.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
[excerto de um tomo encontrado nos aposentos de andrik sardu]
Existe uma crença falha que é largamente
difundida por puro descuido em toda academia de magia em que tive o prazer (e
em algumas o desprazer) de colocar os pés.
Adereço-me neste momento a
você, leitor, confidenciando que nunca me esforcei para negá-la abertamente em
nenhum de meus trabalhos acadêmicos mais difundidos. Seria, para mim, um
desserviço imenso, além de um grande inconveniente, se chegasse porventura aos
ouvidos errados.
Peço, portanto, perdão pela minha digressão,
mas esclareço-a: o direito de ler este tomo restringe-se só e somente só à
minha pessoa.
Caso já tenha cometido o erro
de começar, saiba que meus aposentos estão sob o efeito de barreiras mágicas,
dentre elas – mas não somente - a Clave Regia, o Claustro de Thalmud e o
Labirinto Dedálico.
Aproveite, portanto, seu tempo.
A crença se trata de um dado
memético repetido desde, suponho, a Idade Média:
Humanos não possuem talentos
mágicos inatos.
Além de minha crença no poder
inato ao ser humano ser antiga, e advinda de uma série de casos isolados que
tratei ao longo dos anos no Hospital, um caso em particular reforçou minhas
pesquisas
No século XVIII fui compelido a
fazer uma visita a um pequeno vilarejo a duas horas do Condado de
Gloucestershire na Inglaterra, onde haviam sido encontradas no espaço de dois
anos três vítimas de Esquizofrenia por Hipersensibilidade Sensorial, um caso
grave de Thelemania (perda do controle sobre os próprios poderes) que custou à
vítima toda a sua família e sua criação de gado – todos assolados por uma nevasca
totalmente fora de época, que além de ter congelado os bovinos mais próximos à
sua residência, queimou o terreno por milhas e fez com que os demais morressem
de fome e frio – e, descoberto depois de alguma pesquisa, seis combustões
espontâneas, além de um sem número de desaparecimentos ao longo das décadas.
Neste lugar, com a ajuda de um estudioso da metodologia de busca do baculus divinatorius, fui capaz de
encontrar uma confluência de linhas telúricas.
Estas apresentavam, localmente,
toda a coerência de linhas telúricas naturais. Porém, não me contentei. Consegui
acesso ao acervo pessoal do Visconde, que se provou ser muito solícito. Nele
encontrei um volume do século XIV – assinado por um E. Vyzart, cujo brasão
tomei nota para futura pesquisa -, que retratava todo o mapa telúrico da
região. Enviei meu assistente, Beric, à biblioteca nacional em busca de outros
manuscrítos que pudessem confirmar que esse documento era preciso, enquanto
comparava a diferença das linhas.
Recorri aos meus humildes conhecimentos
da Linha do Sepulcro e fui muito bem sucedido ao descobrir um espírito atado a
um abeto no local.
Transcrevo,
agora, as palavras que ouvi ao forçar uma conexão com o eco:
“Os que se afastaram do abraço da
vida, que agora temem as vias misteriosas do universo, nos acusam de
assassinas, idólatras e indignas. Sua ignorância e negligência alcançam agora
nossa paz, e a despedaça com garras de horror e repulsa.
Derramando óleo no fogo, deixando
que nossa carne evapore, podemos ouvir em suas vozes ensandecidas que irão
abrir a represa, e deixar que a água leve nossos lares. Deixem que gritem seu
mantra fulgurante com a confiança dos tolos, pois seremos nós as libertas!
Deixem que nos rebaixem a párias
até que nossos corpos sem vida se partam. Caso realmente aconteça, estará
cumprido nosso dever. Ficará apenas a amarga bruma da profecia imposta.
Quando o sétimo filho do sétimo
filho nascer ele trará com ele uma nova alvorada.”
A cena pré-datava o conhecimento mágico formal de
hoje, que é difundido pelos humanos. Pré-datava a Rosa-Cruz, o incidente de
Salem em 1692 e até mesmo a primeira publicação do Malleus Maleficarum.
Semanas depois Beric retornou
com dois outros manuscritos confirmando minha teoria de que a disposição das
linhas telúricas havia sido pesadamente alterada, chegando a afetar áreas
próximas à Cheltenham e grande parte de Stroud.
Não haviam no local selos
druídicos, runas futhark ou qualquer tipo de alfabeto que remetesse a outros
planos, nenhuma configuração cabalística, ou qualquer tipo de selo para invocar
divindades.
Havia apenas um desenho
ininteligível – algo totalmente desprovido de significado e que, se me é
permitido presumir, estaria para qualquer sistema mágico de signos como a
idioglossia está para a linguágem. Porém, era sofisticado, ou ao menos
racional, pois seu traçado fazia com que a energia em fluxo pelas linhas
telúricas confluísse, sem pressupor nenhuma conexão com entidades conhecidas.
Aparentemente seu objetivo era concentrar a energia sem empurrá-la ou
absorvê-la, como é ensinado hoje em dia.
Isso me leva a minha tese: os
humanos de hoje são apenas sucessores falhos dos humanos da antiguidade. Cópias
incompletas e presunçosas.
Os que conseguiram reconquistar
sua autarquia conseguem abrir portas tão grandes que muitos podem enlouquecer –
como foi o caso dos três esquizofrenicos retirados e levados ao Hospital – caso
não haja o intermédio de uma força maior, ou de um mentor.
No primeiro capítulo de minha
tese analisarei o selo e as palavras do ritual que presenciei na minha
regressão ao abeto, e também a distorção efetuada nas linhas telúricas.
No segundo capítulo
apresentarei os artefatos encontrados na subsequente escavação que foi iniciada
pelo Sr. Koganei.
No terceiro e último capítulo,
retomarei a tese desenvolvida em meu
livro Caíndo Longe da Árvore,
a respeito da genealogia de espécies mágicas para apresentar uma teoria a
respeito da ausência de limites para os poderes mágicos dos humanos.
Humanos – pobres humanos,
odiados por demônios, apadrinhados por anjos, cobiçados por vampiros – podem
ser muito mais do que parecem. Podem ser o que quiserem.
-Excerto do livro Davi e Golias: Um
Ensaio Sobre Presunção
Escrito por Andrik Sardu
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
[um livro sobre dragões - excerto I]
De acordo com os registros de Azur Van’myr em seu livro Sete Corações de Realeza: A Ascenção e Queda do Império Ur-Dracônico, os raríssimos Dragões Régios que sobrevivem aos perigos do Rancor – transformando-os, possivelmente, em Volsung (os Mortos Tiranos) – e do Delírio – transformando-os em Van’aar (os Perdidos) – por tempo o suficiente para alcançar sua idade mais avançada e progredir ao pico de sua proeza mágica, são denominados Eosyth (os Utopianos). Ao invés de definhar naturalmente com a idade, sua percepção de tempo-espaço começa uma longa transformação que anuncia a chegada de seu terceiro e último cíclo de rápido crescimento possível no desenvolvimento de um Régio – durante esse tempo, o Dragão irá selecionar um local amplo e realizar uma purificação, onde ele irá, durante cem anos, apenas comer e dormir e crescer de dez a cinquenta vezes seu tamanho.
Um Dragão Régio em terceiro ciclo é extremamente territorial e fácilmente perturbável. Tentativas de comunicação com esses dragões durante seu período de purificação é amplamente considerado uma má idéia. Antes de tudo, seu típico capricho dracônico está em seu estado mais latente, tornando-o inclinado a devorar qualquer criatura que se aproxime, salvo sua própria espécie. E em segundo lugar, se sua mudança de percepção sobre o tempo-espaço já estiver avançada, suas alterações sensoriais podem inviabilizar qualquer comunicação. Isso é óbviamente agravado pelo choque de escala.
Quanto a sua escolha de refúgio para viver, Eosyth preferem paisagens abertas às usuais cavernas, devido ao seu rápido crescimento e falta de preocupação com predadores – os Eosyth estão, até hoje, acima de qualquer cadeia alimentar conhecida e são imune a qualquer doença conhecida.
Suas escamas tornam-se mais grossas e, contrastando com seu lustre e lume do segundo ciclo, suas cores ficam mais opacas, lembrando pedras brutas e antigas com uma fraca cintilação ao invés de reflexos agudos. Seus movimentos demoram-se mais a cada dia por conta de suas alterações sensoriais, enquanto seu apetite transita de criaturas de grande porte, para bestas gigantes (se presentes em seus biomas de escolha) e então árvores.
Na última metade de seu terceiro ciclo o dragão começara a retardar sua atividade, dormindo por períodos mais longos e ficando acordado por períodos cada vez menores, comendo principalmente pedras – uma vez que não existem mais alimentos que possam saciar sua fome colossal – até que ele recolha ao seu ponto de repouso final, onde se dará seu ocaso. Por seu tamanho titãnico, o dragão provavelmente ocupará toda a paisagem de sua escolha, caso não seja um oceano, deserto ou grande planície.
Então ele dormirá até que sua alma abandone seu corpo e se dissolva de volta à terra.
Talvez os Dragões Régios saibam onde os Utopianos morrem. Talvez procurem por seus túmulos através de instinto e empatia, ou talvez o espírito do Eosyth os atraia do além de seus ossos colossais em um sutil e esquecido elo de sangue. Isto não é sabido.
Mas se o explorador ousado ou o acadêmico claustrofóbico decidir lançar-se aos ventos e viajar até os refúgios e paraísos onde uma vez viveram e reinaram os Dragões Régios, e fosse em busca, faminto, pelos ossos de suas citadelas e castelos, descobriria que eles muito se assemelham aos ossos dos falecidos Utopianos.
- Spiritus Ignis, Spiritus Vitae: Um estudo sobre Dragões; Elric Swayn
Um Dragão Régio em terceiro ciclo é extremamente territorial e fácilmente perturbável. Tentativas de comunicação com esses dragões durante seu período de purificação é amplamente considerado uma má idéia. Antes de tudo, seu típico capricho dracônico está em seu estado mais latente, tornando-o inclinado a devorar qualquer criatura que se aproxime, salvo sua própria espécie. E em segundo lugar, se sua mudança de percepção sobre o tempo-espaço já estiver avançada, suas alterações sensoriais podem inviabilizar qualquer comunicação. Isso é óbviamente agravado pelo choque de escala.
Quanto a sua escolha de refúgio para viver, Eosyth preferem paisagens abertas às usuais cavernas, devido ao seu rápido crescimento e falta de preocupação com predadores – os Eosyth estão, até hoje, acima de qualquer cadeia alimentar conhecida e são imune a qualquer doença conhecida.
Suas escamas tornam-se mais grossas e, contrastando com seu lustre e lume do segundo ciclo, suas cores ficam mais opacas, lembrando pedras brutas e antigas com uma fraca cintilação ao invés de reflexos agudos. Seus movimentos demoram-se mais a cada dia por conta de suas alterações sensoriais, enquanto seu apetite transita de criaturas de grande porte, para bestas gigantes (se presentes em seus biomas de escolha) e então árvores.
Na última metade de seu terceiro ciclo o dragão começara a retardar sua atividade, dormindo por períodos mais longos e ficando acordado por períodos cada vez menores, comendo principalmente pedras – uma vez que não existem mais alimentos que possam saciar sua fome colossal – até que ele recolha ao seu ponto de repouso final, onde se dará seu ocaso. Por seu tamanho titãnico, o dragão provavelmente ocupará toda a paisagem de sua escolha, caso não seja um oceano, deserto ou grande planície.
Então ele dormirá até que sua alma abandone seu corpo e se dissolva de volta à terra.
Talvez os Dragões Régios saibam onde os Utopianos morrem. Talvez procurem por seus túmulos através de instinto e empatia, ou talvez o espírito do Eosyth os atraia do além de seus ossos colossais em um sutil e esquecido elo de sangue. Isto não é sabido.
Mas se o explorador ousado ou o acadêmico claustrofóbico decidir lançar-se aos ventos e viajar até os refúgios e paraísos onde uma vez viveram e reinaram os Dragões Régios, e fosse em busca, faminto, pelos ossos de suas citadelas e castelos, descobriria que eles muito se assemelham aos ossos dos falecidos Utopianos.
- Spiritus Ignis, Spiritus Vitae: Um estudo sobre Dragões; Elric Swayn
sábado, 13 de outubro de 2012
[thank you]
Pete Trewavas noticed my anxiety, walked over to me and I thought I could read his face saying "What the hell does this guy want" until he touched the little bag I was handing him. Then he looked at it and his face lit up - I bought them marbles.
He walked to Steve Hogarth and gave it to him. It made me very very happy.
I hope Pete didn't get me wrong - the gift was meant for all of them for all the light and epiphany their music has given me time and time again.
But I can't deny it was especially to Steve H. that has made me ne notice things about myself many many times in his lyrics. And never more than right now.
I leave here a short public "Thank you" to them, because I know I could go on and on about the beauty of their music. But that would be pointless - I have no proof, only words only words only words.
Just,
Thank you :)
Hoje eu fui no show do Marillion. Não é muito interessante pra vocês que me acompanham, mas consegui entregar um bilhete à banda junto com um presente :)
Pete Trewavas reparou o quanto eu estava afoito e andou até mim e acredito que pude ler na cara dele "Que raios esse cara quer?" até que ele pegou a trouxinha que estava na minha mão. Ele olhou o que era e sorriu - comprei bolinhas de gude.
Então ele andou até Steve Hogarth e deu a ele o pacote. O que me deixou muito feliz.
Espero que Pete não me entenda mal - o presente foi para todos eles por toda a luz e epifania que a música deles me trouxe de novo e de novo.
Mas não posso negar que foi especialmente para Steve H. que já me fez perceber coisas sobre mim muitas e muitas vezes com suas letras. E agora mais do que nunca.
Deixo aqui um curto e público "Obrigado" a eles, porque sei que eu poderia escrever sem parar sobre a beleza da música deles. Mas isso seria inútil - I have no proof, only words only words only words.
Apenas,
Obrigado.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
[agulha]
Amor
e o espaço que ocupa
Tão pequeno, que às vezes machuca,
na cabeça (de agulha)
Quem dança? Não te preocupa?
Então mergulha no espaço que ocupa
Amor,
Na cabeça da agulha
Quem dança esse tom se orgulha.
Não anjos, confira (com lupa)
fazendo, ao acaso, uma festa.
Amor,
Ajuda - a festa -
que a mente se despreocupa,
Contanto que haja uma fresta
O amor, como gás, ocupa
o espaço que
(a mente emp)resta.
e o espaço que ocupa
Tão pequeno, que às vezes machuca,
na cabeça (de agulha)
Quem dança? Não te preocupa?
Então mergulha no espaço que ocupa
Amor,
Na cabeça da agulha
Quem dança esse tom se orgulha.
Não anjos, confira (com lupa)
fazendo, ao acaso, uma festa.
Amor,
Ajuda - a festa -
que a mente se despreocupa,
Contanto que haja uma fresta
O amor, como gás, ocupa
o espaço que
(a mente emp)resta.
27 de setembro? Dois meses de atraso pro meu poema-de-aniversário. Justo.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
quarta-feira, 16 de maio de 2012
[eu, escritor?]
Antes de começar, peço desculpas. Esse post será pra lá de egocêntrico e talvez um pouco desagradável praqueles que se identificarem.
Andei me lembrando de como eu costumava escrever quando era mais novo. Não que eu me sinta velho agora. Quando digo ‘mais novo’ é daquele jeito que falamos dos 15 anos pra sentir menos vergonha.
Eu não comecei escrevendo. Comecei brincando no RPG Maker. Me lembrei de uma forma vívida demais pra ser agradável da sensação de exaltação que eu tinha ao fazer histórias bobíssimas, clichês e me divertia com elas durante horas, meses, “programando” e desenhando os personagens animados. Para os mais familiares com termos de jogador, cheguei a terminar a primeira dungeon de pelo menos uns três RPG’s, mas alguma mão divina sempre fazia meu computador dar pau e eu precisava formatar. Daí sempre começava de novo, com uma história nova, muitas vezes. Ficava orgulhoso e continuava fazendo, soltando minha fumaça sem precisar de ninguém olhando nem me dizendo que estava legal.
Depois comecei a escrever histórias épicas – só começava – mas depois de um tempo largava por falta de ideias. Sempre começava outra. Sempre via meus erros e pensava “eu mudei e não me identifico mais com isso”, partindo pra próxima.
Então abri o fotolog (devidamente deletado) onde eu fazia registros pra mim mesmo das coisas que eu queria registrar. Nunca me preocupei com notoriedade ou fama ou fazer amigos, como era normal na época (até no meio metaleiro, no qual eu meio que me inseria sem querer) ainda que isso tenha vindo, por vezes, até mim. Com o tempo ele foi andando até virar o blog.
Tenho quase certeza – e o pouco que me falta de certeza sobra de vontade de acreditar – que sempre se chamou ‘a sip of ether’.
Era um lugar onde eu vinha pra tirar coisas do peito. Não passava pra quase ninguém.
Nessa época já não escrevia mais histórias mirabolantes – ainda que clichês – com o mesmo gás de antes. Meu tato pra colocar uma palavra atrás da outra e fazer soar interessante definitivamente tinha melhorado, mas faltava-me certa faísca de inspiração. Ela foi se apagando com o tempo e não sei quando foi que começou.
Talvez já tenham reparado pelos últimos posts que estou entrando numa fase estranha de resgate. De querer trazer de volta umas coisas que eu era e misturar com outras coisas que sou.
Foi aí que comecei a pensar – e, confesso, penso demais -; hoje eu me considero indubitavelmente melhor escritor do que eu era quando tinha 16 anos, mas certamente eu não sou metade do contador de histórias.
Eu acreditava que aquilo era o melhor que eu podia fazer e por isso dava tudo que eu tinha pra fazer cada um dos projetos, e me encantava com eles. Ficava feliz e prosseguia. Olhava pra trás pra corrigir as falhas, mas prosseguia ainda assim. E cá entre nós, não era nada mal.
Hoje eu não sei.
Andei me lembrando de como eu costumava escrever quando era mais novo. Não que eu me sinta velho agora. Quando digo ‘mais novo’ é daquele jeito que falamos dos 15 anos pra sentir menos vergonha.
Eu não comecei escrevendo. Comecei brincando no RPG Maker. Me lembrei de uma forma vívida demais pra ser agradável da sensação de exaltação que eu tinha ao fazer histórias bobíssimas, clichês e me divertia com elas durante horas, meses, “programando” e desenhando os personagens animados. Para os mais familiares com termos de jogador, cheguei a terminar a primeira dungeon de pelo menos uns três RPG’s, mas alguma mão divina sempre fazia meu computador dar pau e eu precisava formatar. Daí sempre começava de novo, com uma história nova, muitas vezes. Ficava orgulhoso e continuava fazendo, soltando minha fumaça sem precisar de ninguém olhando nem me dizendo que estava legal.
Depois comecei a escrever histórias épicas – só começava – mas depois de um tempo largava por falta de ideias. Sempre começava outra. Sempre via meus erros e pensava “eu mudei e não me identifico mais com isso”, partindo pra próxima.
Então abri o fotolog (devidamente deletado) onde eu fazia registros pra mim mesmo das coisas que eu queria registrar. Nunca me preocupei com notoriedade ou fama ou fazer amigos, como era normal na época (até no meio metaleiro, no qual eu meio que me inseria sem querer) ainda que isso tenha vindo, por vezes, até mim. Com o tempo ele foi andando até virar o blog.
Tenho quase certeza – e o pouco que me falta de certeza sobra de vontade de acreditar – que sempre se chamou ‘a sip of ether’.
Era um lugar onde eu vinha pra tirar coisas do peito. Não passava pra quase ninguém.
Nessa época já não escrevia mais histórias mirabolantes – ainda que clichês – com o mesmo gás de antes. Meu tato pra colocar uma palavra atrás da outra e fazer soar interessante definitivamente tinha melhorado, mas faltava-me certa faísca de inspiração. Ela foi se apagando com o tempo e não sei quando foi que começou.
Talvez já tenham reparado pelos últimos posts que estou entrando numa fase estranha de resgate. De querer trazer de volta umas coisas que eu era e misturar com outras coisas que sou.
Foi aí que comecei a pensar – e, confesso, penso demais -; hoje eu me considero indubitavelmente melhor escritor do que eu era quando tinha 16 anos, mas certamente eu não sou metade do contador de histórias.
Eu acreditava que aquilo era o melhor que eu podia fazer e por isso dava tudo que eu tinha pra fazer cada um dos projetos, e me encantava com eles. Ficava feliz e prosseguia. Olhava pra trás pra corrigir as falhas, mas prosseguia ainda assim. E cá entre nós, não era nada mal.
Hoje eu não sei.
segunda-feira, 12 de março de 2012
[madrugada]
[27 de Julho de 2010]
É madrugada
Tudo aquilo que é silêncio traz um arrepio
O ontem se pendura só por um fio
E o dia de amanhã ainda não me diz nada
É madrugada
Passou uma era e a outra se atrasa
O sol se escondeu sem deixar uma brasa
E faltam só algumas horas pra virada
É madrugada
E eu meio que espero não esperando
O pouco que resta me sufocando
Essa curva incompleta que vem na estrada
É madrugada
Poema-de-aniversário do ano de 2010. Acho que a palavra é "longing", que pra mim se traduz como uma esperança cansada.
Acho que não escrevi em 2011 porque ainda não tinha exatamente passado (e passou? e passa?).
É madrugada
Tudo aquilo que é silêncio traz um arrepio
O ontem se pendura só por um fio
E o dia de amanhã ainda não me diz nada
É madrugada
Passou uma era e a outra se atrasa
O sol se escondeu sem deixar uma brasa
E faltam só algumas horas pra virada
É madrugada
E eu meio que espero não esperando
O pouco que resta me sufocando
Essa curva incompleta que vem na estrada
É madrugada
Poema-de-aniversário do ano de 2010. Acho que a palavra é "longing", que pra mim se traduz como uma esperança cansada.
Acho que não escrevi em 2011 porque ainda não tinha exatamente passado (e passou? e passa?).
quinta-feira, 8 de março de 2012
[oceano]
[27 de Julho de 2008]
(Numa noite comum, deita-se e cobre-se)
Desprende das coisas inertes do mundo
Mergulha sem medo num sono profundo
Desperta pra sempre no topo do monte
O sol se derrete em luz-horizonte
Percebe no céu de papel uma ponte
Só por um segundo
Sentado a sonhar, ao pé do pomar
Num salto se solta do monte a voar
Seus olhos na lua, seu ser ele abarca
Sua mente uma força, seu corpo uma arca
A lua de giz faz no céu sua marca
Reflete no mar
Despenca, então, à sua fria morada
Como a vida se torna emboscada?
Afoga-se sob lencóis, incomum
Procura na imagem sentido algum
Se sente pequeno, finito, só um,
Quase nada
(Lhes pergunto,)
Se Deus tem pra cada indivíduo um plano
Por quê foi dar justamente ao humano
Ao fazê-lo restrito, pensante, ansioso
Com pompa, audácia, oscilante, medroso
Mártir e santo, ou até monstruoso
Uma alma do tamanho dum oceano?
Não me lembro bem quando comecei com esse hábito. Acho que foi, de fato, em 2008 (um ano um tanto cabalístico pra mim) que escrevi meu primeiro poema-de-aniversário - um bom hábito pra alguém que extravaza no papel.
Ano passado, 2011, não escrevi. Eu gostaria de acreditar que é uma espécie de bloqueio de escritor, mas hoje percebo que esse é só o nome que a gente dá quando não quer se responsabilizar por procurar a saída.
Será que eu vou escrever esse ano?
(Numa noite comum, deita-se e cobre-se)
Desprende das coisas inertes do mundo
Mergulha sem medo num sono profundo
Desperta pra sempre no topo do monte
O sol se derrete em luz-horizonte
Percebe no céu de papel uma ponte
Só por um segundo
Sentado a sonhar, ao pé do pomar
Num salto se solta do monte a voar
Seus olhos na lua, seu ser ele abarca
Sua mente uma força, seu corpo uma arca
A lua de giz faz no céu sua marca
Reflete no mar
Despenca, então, à sua fria morada
Como a vida se torna emboscada?
Afoga-se sob lencóis, incomum
Procura na imagem sentido algum
Se sente pequeno, finito, só um,
Quase nada
(Lhes pergunto,)
Se Deus tem pra cada indivíduo um plano
Por quê foi dar justamente ao humano
Ao fazê-lo restrito, pensante, ansioso
Com pompa, audácia, oscilante, medroso
Mártir e santo, ou até monstruoso
Uma alma do tamanho dum oceano?
Não me lembro bem quando comecei com esse hábito. Acho que foi, de fato, em 2008 (um ano um tanto cabalístico pra mim) que escrevi meu primeiro poema-de-aniversário - um bom hábito pra alguém que extravaza no papel.
Ano passado, 2011, não escrevi. Eu gostaria de acreditar que é uma espécie de bloqueio de escritor, mas hoje percebo que esse é só o nome que a gente dá quando não quer se responsabilizar por procurar a saída.
Será que eu vou escrever esse ano?
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
[laika come home]
O povo estava reunido em volta das televisões e, momentos depois do lançamento, quebrou-se o silêncio sepulcral. A maioria especulava, alternando entre a esperança e o temor. Bisavôs e bisavós até se recordavam – fazendo alguma força - de Laika, Yuri Gagarin, Armstrong e Aldrin. Os cínicos ainda não haviam se cansado de debater a veracidade do “pequeno passo para o homem” e dos subsequentes, e os exagerados fingiam desinteresse, alegando que já viviam extraterrestres entre nós, como se já tivessem visto muito mais do que aquilo.
E enquanto todo esse burburinho acontecia nas casas – as ruas em silêncio – os tripulantes assistiam da janela o que o resto do mundo assistia nas telas de LED.
O espaço era vasto e vazio – e lindo. Todos os astronautas compartilhavam o sentimento de honra e reverência. Cada um também tinha sentimentos distintos, se despediam da terra levando consigo apenas o que não conseguiam deixar para trás. Não eram, como todos nós, apenas astronautas.
Eram pais, mães, irmãos, amores. Professores, poetas, homens de fé, felizes e tristes e conflitados. Não podiam deixar de ver luzes diferentes pelas janelas e, poupados da gravidade, agora só sentiam pesares que independiam dela. Os sentimentos eram controversos e nenhum sabia o que esperar do fim da missão quando aterrissassem talvez na superfície daquele novo planeta.
O imediato olhava para os painéis e indicadores com frequência, checando por irregularidades que pudessem ocorrer, mas aquelas luzes e botões nada diziam ao seu lado leigo. Executava aquelas tarefas como se fosse tão simples quanto dirigir um carro. Enquanto isso seus pensamentos vagavam pela estratosfera, exosfera, vácuo, indo de encontro à mulher e a filha que o esperavam.
Talvez a preocupação com os indicadores fosse medo da morte, naquele lugar onde não havia possibilidade de socorro. Talvez fosse a vontade de retornar. Quem sabe?
O psicólogo era solteiro, desinteressado, jovem – o tanto quanto poderia ser para tripular um foguete. Mas era cheio de ideias, ainda, e lembrava-se das pessoas. Já tinha visto uma série de casos estranhos, mas acreditava que condições psicológicas são na realidade doenças sociais. Pensava se encontrariam vida ao aterrissar, anos depois. Pensava se essa vida seria racional, e se teriam os mesmos problemas que nós. Depressão, apatia, paranoia, se teriam medo do objeto não identificado.
Se atirariam na nave ou não, pouco lhe importava. Só importava se haveriam curas para males que consideramos invisíveis e muitas vezes subestimamos.
Queria saber se, caso houvesse vida extraterrestre, ela traria mais problemas ou menos problemas. Teria mais problemas ou menos problemas.
Um geólogo os acompanhava. Era o segundo mais velho da tripulação e já sentia nos ossos o cinismo. Sua mente racional a única solução – ao menos até atingirem o espaço. A falta de gravidade o tocou de forma quase irreversível. Ainda não acreditava em Deus. Não acreditava em livros sagrados. Ainda depositava sua fé na ciência. Mas naquele momento teve certeza de que sabíamos muito pouco e que tudo que podia fazer era especular.
Uma lágrima lhe escapou, mas resolveu deixa-la pra depois. Ocupou-se em olhar o espaço da janela, contando as estrelas a perder de vista, e por um momento teve certeza de que pode ver com o coração mais do que o Hubble, quando capturou treze bilhões de anos de luz.
O capitão, do alto de seus quase sessenta anos cansados, tinha medo que a missão fosse infrutífera. Solo fértil, atmosfera e água fresca ou não.
E enquanto todo esse burburinho acontecia nas casas – as ruas em silêncio – os tripulantes assistiam da janela o que o resto do mundo assistia nas telas de LED.
O espaço era vasto e vazio – e lindo. Todos os astronautas compartilhavam o sentimento de honra e reverência. Cada um também tinha sentimentos distintos, se despediam da terra levando consigo apenas o que não conseguiam deixar para trás. Não eram, como todos nós, apenas astronautas.
Eram pais, mães, irmãos, amores. Professores, poetas, homens de fé, felizes e tristes e conflitados. Não podiam deixar de ver luzes diferentes pelas janelas e, poupados da gravidade, agora só sentiam pesares que independiam dela. Os sentimentos eram controversos e nenhum sabia o que esperar do fim da missão quando aterrissassem talvez na superfície daquele novo planeta.
O imediato olhava para os painéis e indicadores com frequência, checando por irregularidades que pudessem ocorrer, mas aquelas luzes e botões nada diziam ao seu lado leigo. Executava aquelas tarefas como se fosse tão simples quanto dirigir um carro. Enquanto isso seus pensamentos vagavam pela estratosfera, exosfera, vácuo, indo de encontro à mulher e a filha que o esperavam.
Talvez a preocupação com os indicadores fosse medo da morte, naquele lugar onde não havia possibilidade de socorro. Talvez fosse a vontade de retornar. Quem sabe?
O psicólogo era solteiro, desinteressado, jovem – o tanto quanto poderia ser para tripular um foguete. Mas era cheio de ideias, ainda, e lembrava-se das pessoas. Já tinha visto uma série de casos estranhos, mas acreditava que condições psicológicas são na realidade doenças sociais. Pensava se encontrariam vida ao aterrissar, anos depois. Pensava se essa vida seria racional, e se teriam os mesmos problemas que nós. Depressão, apatia, paranoia, se teriam medo do objeto não identificado.
Se atirariam na nave ou não, pouco lhe importava. Só importava se haveriam curas para males que consideramos invisíveis e muitas vezes subestimamos.
Queria saber se, caso houvesse vida extraterrestre, ela traria mais problemas ou menos problemas. Teria mais problemas ou menos problemas.
Um geólogo os acompanhava. Era o segundo mais velho da tripulação e já sentia nos ossos o cinismo. Sua mente racional a única solução – ao menos até atingirem o espaço. A falta de gravidade o tocou de forma quase irreversível. Ainda não acreditava em Deus. Não acreditava em livros sagrados. Ainda depositava sua fé na ciência. Mas naquele momento teve certeza de que sabíamos muito pouco e que tudo que podia fazer era especular.
Uma lágrima lhe escapou, mas resolveu deixa-la pra depois. Ocupou-se em olhar o espaço da janela, contando as estrelas a perder de vista, e por um momento teve certeza de que pode ver com o coração mais do que o Hubble, quando capturou treze bilhões de anos de luz.
O capitão, do alto de seus quase sessenta anos cansados, tinha medo que a missão fosse infrutífera. Solo fértil, atmosfera e água fresca ou não.
Agradecimentos especiais (e desculpas) ao pessoal do Clube da Leitura da Baratos da Ribeiro, que me proporcionou a oportunidade de "sair da caixinha" com o tema do último encontro do ano de 2011. Novamente, mil perdões pelo não comparecimento e atraso.
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