quarta-feira, 24 de agosto de 2011

[mais fundo]

Se você pudesse ter observado de uma distância, do lado de fora, na segurança de poder divergir em como a noite era bonita, ainda ouviria os gritos rasgando seu caminho para fora daquelas janelas. Ainda sentiria arranhar sua espinha uma fagulha de imaginação que faria com que corresse, não importa se em socorro ou para nunca mais retornar.
Se pudesse ter assistido do lado de dentro, em cadeira cativa, sentiria pena, medo, ânsias de vômito. O cheiro forte entraria por suas narinas, as cores seriam fortes demais e os gritos, agora, ricocheteariam pelas paredes e ecoariam pelos tambores de seus ouvidos. Tentaria decifrar a escrita rústica nas paredes no chão e no teto, procurar algo que juraria ter visto se mover dentro da chama das velas ou se concentrar no tremeluzir pálido das lâmpadas de fósforo, mas não conseguiria. Seus olhos gravitariam para o homem deitado à mesa e a mulher que o mazelava em pé.
Veria que, ao cheirar os dedos, as sobrancelhas de Deirdre se arqueavam em dúvida sobre seus olhos baços e perdidos enquanto tentava decidir se o odor férreo provinha do sangue ou da ferrugem de suas ferramentas. Veria que ela pouco se deixava afetar pelo sofrimento que se intensificava e circulava pelas linhas e signos entalhados como ar viciado.
Veria que, diversas vezes, o que sobrou de Rodes amarrado à mesa, esboçava palavras que não conseguiam sequer passar de seu peito arfante. Que suas pupilas embaçadas pelas lágrimas procuravam foco em qualquer lugar. Veria que, não importa a profundidade de seu transe, onde quer que estivesse transitando, a dor era evidente.

Se pudesse entrar na cabeça de Rodes e ter a sensação de que o conhecia, sentiria nojo. Um nojo tão profundo que, ao sair de sua mente, se sentiria imundo.  Saberia de todos os seus crimes hediondos, desumanos. As vidas que tirou e as vidas que não tirou, cujos donos e donas forçou a viver em eterna espera e perda, em eterno pesar. Sentiria nojo nas coisas que fez, nos lugares que tocou, entre pernas, entre rins, o suor com o cheiro característico da adrenalina. Veria seus olhos injetados, seu sorriso amarelo e tudo que fora antes.
Ao sair, talvez concordasse com Deirdre, talvez não. Talvez não reconhecesse o que sobrou de Rodes, se contorcendo, o ar atingindo seus intestinos expostos, os ácidos de seu próprio corpo corroendo tudo pelos seus vasos sanguíneos. Seu sangue em todos os lados e a dor que gritava e suava para expulsar sempre retornando, forçada pelo rito.
Talvez tivesse a certeza – e por um segundo teria – de que ele merecia tudo aquilo que passava. Talvez concordasse com Deirdre, talvez não.

Se pudesse ver no que pensava Deirdre veria lembranças. Veria lembranças felizes e saberia que eram todas venenosas, pois haviam reagido como em química com uma única lembrança com as cores de suas filhas, de aço e de sêmen. De suas filhas que tomavam seus nomes emprestados de flores.
Sentiria dor, sofrimento, compaixão e cada um destes traria uma profunda angústia, pois saberia do fundo do seu ser, que não poderia nem começar a compreender o que Deirdre sentia. Saberia que tudo que jamais sentiu não estava nem aos pés de uma fração daquilo e se sentiria impotente.
Ao sair, se sentiria impotente de novo, pois saberia que cada osso que estalava abafado pela carne mole, aquilo não fazia com que Deirdre se sentisse melhor. Apenas fazia com que Rodes se sentisse pior - talvez fosse exatamente aquilo que ela desejava.
Veria um rosto que não era o de Deirdre, mãos que também não pertenciam ao seu mundo, ao mundo de homem algum, e teria medo do lugar onde está. Saberia que aquela era uma interseção entre seu planeta e algum completamente alienígena. Deidre havia cruzado aquela linha havia muito tempo, e se tornado algo que só se sabia humano pelas memórias que mal conseguia distinguir.
Se sentiria impotente – e talvez um pouco aliviado – por não poder fazer nada naquele quadro.

Saberia que um monstro havia criado outro e que essa era uma espiral complicada, tão complicada quanto os entalhes nas paredes.
Saberia que, para Rodes, aquilo acabaria no momento em que seu coração parasse de bater. Que ele ao menos teria essa escapatória no final.
Que Deirdre sairia daquela sala com um corpo numa sacola – talvez em várias – e que tudo aquilo que girava e girava dentro de sua cabeça continuaria em uma ciranda infinita.
Teria a certeza de que uma pessoa boa poderia se tornar um monstro ainda mais sem piedade do que um louco, pois tinha consciência do que fazia. Saberia que, tirando de alguém tudo aquilo ao que dá valor, uma besta perfeita está criada.
Mas não teria a certeza se loucura era, de fato, o caso de Rodes, e sentiria nojo mais uma vez. Decidiria não pensar mais naquilo.

Não saberia o que sentir. E depois de um momento, de uma volta completa pela espiral, se recolheria. Não poderia ser diferente.
Simplesmente veria sua compaixão se diluir em fumaça – ou não, e se sentiria um hipócrita. Seu impulso à empatia não seria o suficiente para superar a agonia. Simplesmente agradeceria que o quadro não aconteceu com você.
Pois aquele quadro não pertence no mundo de onde você vem. Ele faz parte de um abismo escuro, profundo, onde só habitam aqueles que escolheram nele habitar ou aqueles que nele foram empurrados. Um abismo onde tudo que você pode ver é a escuridão, e você viveria com prazer sem o conhecimento de onde é o fundo, e o medo não haver um.

Saberia que tem uma escolha, mas não se seria forte o suficiente para fazê-la. Teria medo e dúvida e se perguntaria, para sempre, se realmente quer ver o que há um pouco mais abaixo. Um pouco mais.