quarta-feira, 31 de outubro de 2012

[de estrelas (e pedra submersa) - parte 1]


do som ao silêncio:
- Então... me diga, em que ramo milagroso você trabalha? – tentou quebrar o silêncio desconfortável. O cliente hesitou por ainda mais alguns segundos, e ele refletiu se este era do tipo que gostava de sentir a dor.
- Sou advogado. – respondeu, por fim, um pouco desconfortável com as perfurações iniciais.
- Vão te deixar entrar em um tribunal com uma tattoo desse tamanho?
- Eu sou do tipo que passa o dia no escritório. – deu uma risada rouca, suas costas pálidas se movendo. Ele quase podia ver as costelas se separando conforme o ar entrava e saia rapidamente de seus pulmões.

Alguns dias antes os sinos da porta haviam tocado, fazendo com que ele parasse de olhar para suas anotações tediosamente, depois de muitos dias. Havia entrado no estúdio usando um terno e carregando uma maleta – direto do trabalho, assumiu.
- Ouvi dizer que você é o melhor. – o homem disse, esboçando um sorriso cansado e olhando para a loja vazia, analisando as fotos empoeiradas espalhadas pelas paredes – Acho que estavam certos.
Seus olhos eram enquadrados por olheiras escuras e fundas, e quase não se percebia que eram de um azul arranhando o turquesa. Julgando por seu cabelo e barba, ele não visitava um barbeiro havia pelo menos um mês.
- Segundo melhor. – deu de ombros – O melhor – disse, deixando o sarcasmo transparecer - mora do outro lado da cidade e trabalha numa galeria que é encerada todos os dias.
- Também ouvi dizer que você faz de tudo. – insinuou, se aproximando da bancada e apoiando sua maleta de couro, arranhada e fosca com o uso.
Ele franziu o cenho e virou de costas, andando para os fundos da loja.
- Se é isso que você ouviu, amigo, garanto que estão enganados. – gesticulou para que o homem saísse – Não volte mais aqui. Não vou infringir a minha ética só porque um riquinho ouviu falar que sou um garoto de programa.
- Não me expressei bem. – se apressou o homem de terno – Por favor, espere.
Ele se virou, ainda com uma carranca e hesitou antes de caminhar de volta até a bancada. Se deslocando devagar, esperou para ouvir o resto da conversa fiada.
- Tenho um pedido especial. – Abriu a mala e tirou de dentro uma pasta, que ele apoiou sobre a tampa. Desprendeu os elásticos e tirou do interior uma folha dobrada. Segurou as pontas com muito cuidado, e desdobrou-a.
- Quero que tatue isso nas minhas costas. – o cliente disse, demostrando uma resolução inesperada, e por um segundo ele pode jurar que um brilho intenso havia passado por trás do negrume de suas pupilas.
Olhou a vítima de cima abaixo, os olhos carregados de julgamento, pensando a respeito. Tinha os cabelos escuros e volumosos, mas ressecados. Era jovem, mas a testa denunciava linhas fundas marcando a fronte. Os ombros inclinados para frente pesavam. Percebeu as pernas fracas, que deixavam as calças pendularem esbarrando os tornozelos.
- Isso não vai sair barato... – atacou, pensando como comerciante ­- e vai demorar. Ainda por cima se tratando de um “pedido especial”. – constatou, analisando as linhas do desenho.
- Sou um homem generoso. – respondeu espirituoso, estendendo o papel e deixando seu braço ceder sobre a bancada. Seus olhos acompanharam a leve suspensão da folha pelo ar antes dela se acomodar sobre a superfície.
- Perfeitamente. – inspirou profundamente, pausou por um segundo e continuou – e qual é o esquema? – perguntou desconfiado, depois de recobrar a compostura. – Você mencionou o fato de “eu fazer tudo”. Qual é a jogada?
Algo não se encaixava, e ele tinha um nariz treinado para transgressores e bandidos, mas estava curioso. Não era todo dia que alguém cheirando bem entrava na loja com um pedido grande em mãos. As pessoas tinham medo de sair do aconchego de seus lares para se aventurar pelo subúrbio, muito menos se tinham opções similares perto de casa.
Mesmo assim, lá estava ele, sua aparência traumatizada como um veterano de guerra, em roupas sociais e com um relógio caro.
- Em primeiro lugar, vou precisar te orientar. Esse desenho requer precisão e...
- Não preciso de orientação. – interrompeu, irritado. O cliente apenas o encarou esperando permissão para terminar. – Me desculpe. Continue.
- Precisão e razões matemáticas fixas. – completou.
Razões matemáticas? Parecia uma piada, enquanto ele olhava a folha preenchida com desenhos espalhados a esmo. Não analisou muito a fundo.
- Vou precisar de compassos e esquadros? – mostrou os dentes amarelados.
- Talvez. Tudo depende, mas pelo que pesquisei você tem as mãos firmes e é detalhista. Desde que eu lhe ensine a regra básica, você vai conseguir se virar. – gesticulou para os desenhos das paredes. – Eu confio em você.
Um segundo de estranhamento ocupou a sala, mas ele foi logo quebrado pela descrença e pressa.
- Até aí tudo bem. Qual é o segundo lugar? – Ainda não vira nada ilegal.
- Eu vou trazer a tinta que você deve usar. – levantou os olhos do papel e encarou o tatuador – Ela não pode ser misturada com mais nenhuma.
Houve silêncio, o terno estendeu a mão direita, seus dedos finos como um contrato, esperando apenas uma assinatura.

Preço dado, ele aceitara, e agora trocavam casos engraçados por cima do motor barulhento. A pele esticada do advogado parecia que ia ceder a qualquer momento sob as investidas velozes das agulhas.
- Se você soubesse o número de casos que consumidores ganham ficaria assustado. – Havia se acostumado com a breve ardência das agulhas alguns minutos antes e já conseguia conversar. – Algumas pessoas montam uma pequena fortuna só com esses casos bobos. Direito civil não é nada comparado com os casos bizarros que passam na mão do pessoal de direitos do consumidor.
- Eu imagino. Tenho vontade de processar minha operadora de telefone todos os dias. – riu, condescendente.
- Uma senhora de sessenta anos um dia resolveu medir a quantidade de refrigerante que tinha vindo na garrafa dela, sabe deus por quê. Ela descobriu que ao invés de dois litros, tinha um litro e noventa e oito. Ganhou um processo e ainda forçou a companhia a trocar toda a aparelhagem pra se certificar que não acontecesse de novo. Fora os danos morais.
- Trabalhar com clientes é difícil, eu vou te contar. – resmungou – Alguns chegam a dar raiva. Mas eu juro que enforco se algum cliente meu disser que é operador de telemarketing.
- Telefonia bate recorde no número de processos por lá. – adicionou.
Ele sangrava pouco e suas veias faziam contornos azuis debaixo de sua pele. O tatuador forçou os olhos lembrando-se de algo, enquanto ajeitava o fio da máquina por baixo da perna.
- Um tatuador argentino uma vez perdeu um processo.
- Por quê? – levantou o queixo do apoio, virando levemente a cabeça.
- O sujeito não foi com a cara do cliente. Discutiram muito, mas o cara resolveu tatuar mesmo assim. Afinal, ele era o melhor da cidade.
- Como o seu colega da galeria encerada? – perguntou o advogado, ironicamente.
- Exatamente. – riu.
A orientação era que ele começasse marcando o diâmetro de cada círculo concêntrico – isso tudo ainda usando a própria tinta. Ele demorou a tarde toda, traçando as linhas básicas com um preto aguado, sempre prestando atenção para não errar as medidas precisas que o cliente exigiu que ele aplicasse, o que era incômodo – mas ele era um perfeccionista.
- O que aconteceu foi que depois de uma sessão de seis horas silenciosas e doloridas; já que o safado tinha a mão pesada; o homem foi se olhar no espelho.
- E aí?
- Bom, eu me esqueci de mencionar que o tatuador era uma borboleta. O cliente terminou com um caralho do tamanho de uma raquete de tênis tatuado nas costas. – concluiu, levantando a agulha para não fazer nenhuma besteira nos contornos enquanto ria.
- Ai... rir dói. – lacrimejava de dor e gargalhadas ao mesmo tempo – Minhas costas estão ardendo. Espero que você não esteja tatuando um pinto em mim também. – provocou.
- Pode apostar, amigo. Cartesianamente.

A primeira sessão foi demorada, mas marcaram a segunda com o intervalo de apenas uma semana. O advogado estava lá novamente, mais abatido e com os olhos ainda mais fundos, carregando sua maleta.
O homem aguentava cada segundo, mesmo com o corpo frágil que tinha. Ele ficou surpreso com a resistência. Pensou se não seria masoquista, mas seus olhos traduziam algo diferente de prazer.
- Deve ser realmente irritante trabalhar com essa história de divórcio todos os dias. Você usa um anel, não é casado? – observou o laço prateado que envolvia o dedo anular do cliente.
- Não. – respondeu, sem se prolongar. A dor pelo estresse constante das camadas superficiais da pele começava a tomar espaço, fazendo as frases mais curtas e os segundos mais longos.
- Não sente falta? Um homem deveria ter filhos, pra continuar seu legado, ou é o que dizem por aí... – tentou parecer inteligente. Ele puxou um pouco mais de tinta com a ponta da máquina.
- Você tem filhos? – reverteu, mas franziu a testa e trincou os dentes por um segundo entre as palavras.
- Não. – respondeu, voltando a injetar a tinta sob a pele do cliente – Meu estilo de vida não me dá segurança o suficiente pra tentar algo assim. – continuou, quase na metade do volume.
- Então você me entende.
Ele pôde ver suas bochechas se contraindo num sorriso leve.

Na semana seguinte continuaram de onde tinham parado, subdividindo as coroas em áreas menores, o que era consideravelmente mais simples, ainda que trabalhoso. Nada se compararia com a precisão cirúrgica que as coroas circulares haviam exigido nas sessões anteriores.
- Você não troca de roupa? – perguntou o tatuador. O advogado riu, sua mão frouxa na alça da valise que parecia flutuar.
- Prefere homens com roupas casuais?
- Que seja. Só não venha fedendo pra cá. Tenho que ficar sentindo seu cheiro a tarde toda. – deu de ombros.
Sentaram-se e ele continuou a esquematizar, linha por linha. Cada novo traço pedia uma nova consulta na referência que o cliente havia trazido, agora cheia de anotações e rabiscos em caneta azul, mostrando medidas e hierarquias. A forma geral da tatuagem começava a se deixar notar, mas ainda timidamente, quase se camuflando junto às veias aparentes.
- Você já tinha essa ideia desde pequeno? Ser tatuador?
- Quando eu era pequeno queria ser astronauta. Meu pai não gostava nada da idéia. Dizia que no máximo eu ia me juntar aos chimpanzés na galeria de animais que foram atirados no espaço. Na verdade ele não acreditava que o homem tinha pisado na lua. Quando comecei a estudar astronomia ele me deu uma surra e jogou os livros que eu tinha alugado fora. – fez uma pausa para conferir a referência – Depois outra pela multa da biblioteca. – concluiu, com uma risada seca.
- Que história triste.
- Sério, não precisa ter pena. O velho já morreu faz tempo.
- Mas você ainda está aqui, não está?
A pergunta pendurou-se no ar, esperando por uma resposta que não veio. Suas entranhas fizeram um movimento familiar, mas incômodo. Engoliu seco. Fez questão de pesar um pouquinho mais a mão nos traços depois dela.
Naquela noite ele sonhou com lâmpadas amarelas, sarjetas e sandálias.

Seus cabelos estavam começando a ficar grisalhos, e as entradas não o abandonavam nunca. Tinha manchas amareladas nos dedos e parecia ser muito mais velho do que realmente era.
Olhou no fundo dos olhos cor de mel refletidos no espelho e prometeu que ficaria de bico fechado durante a sessão. Aquele homem fraco e cansado falava coisas estranhas que o jogavam para cantos escuros que ele não gostava de visitar em sua mente. Ele conseguia ler cada pensamento desagradável de Gregório, até mesmo aqueles que ele deixava escapar nos momentos fugazes em que os afugentava como fantasmas de uma vida passada.
Ou então, ele estava finalmente ficando maluco.
Ouviu o sino da porta tocar, lavou o rosto e caminhou para atender.

há um abismo entre o que você vê e o que deveria estar vendo:
- Eu trouxe a tinta. – disse o cliente, carregando uma sacola de supermercado.
Ele estava tão abatido que Gregório notou o volume dentro da sacola antes das suas olheiras fundas. Parou por um segundo analisando seu rosto antes de falar qualquer coisa.
- Comprou agora ali na panificação? – tentou distrair-se das covas fundas que marcavam suas bochechas. Ele não respondeu.
Seguiu sua marcha trôpega para dentro do estúdio, colocou a sacola sobre uma pequena mesa de canto e se jogou na maca, de bruços, fazendo um estalo abafado, seu rosto na direção da parede. Levantou o braço magro e fez sinal para que Gregório viesse logo, sua respiração lenta e pesada.
Parou, apoiando-se com a mão no arco da porta, refletindo. Olhou para a carcaça em seu estúdio, voltou-se para o saco plástico - a semelhança era perturbadora.
Olhou o conteúdo: oito vidros diferentes – alguns com aparência de remédios, outros de corante e um que parecia um pequeno pote de tinta guache – cheios com tinta preta. Pegou-a pela alça e carregou até perto de suas máquinas. Começou a preparar o material, em silêncio.
Ligou a fonte e absorveu a tinta com as agulhas. Testou o motor. Parou.
- Tem certeza disso? Não é qualquer coisa que vai ficar na sua pele, sem contar que você pode ter uma alergia séria.
- Eu sei. – suas palavras compostas de súplica e comando – Vá em frente.
Não ousou questionar.
Olhou para a primeira sessão, que começava no topo à esquerda, invadindo parte do ombro e do pescoço. Olhou para a referência, procurou a primeira forma, ligou a máquina e levou a agulha à pele.
A sessão foi difícil. Teve mais cuidado do que nunca antes, como se o corpo do advogado fosse rasgar como uma folha de papel. Respirava fundo e percebeu que não era o único.
Era tão pouco sangue que quase se esquecia de limpar. A nova tinta trouxe uma nova dor. O cliente trincava os dentes, suava frio, tremia às vezes.
Cada pequeno símbolo marcado na pele adicionava uma nova camada de febre. Ele fez uma pausa, sem que o homem pedisse.
- Não pare. – sua voz era um sopro.
- Tem certeza?
- Não pare até terminar essa parte.
- Não posso te anestesiar, mas tenho um pouco de vodka.
- Não.
- Você é masoquista? – não se conformou.
- Não. – inspirou. Expirou: - Continue.
Gregório obedeceu. Suas pernas bambas de nervosismo, seus braços firmes de perfeccionismo. Sentiu-se sádico, imundo. Aquela sessão tornou-se uma tortura particular. Mas não podia parar.
Ele sentiu pena, raiva. O temeu, invejou e admirou. Cada emoção ardia, mas ele não ousou parar.
O tempo se arrastou, mas a sessão teve seu fim. Gregório fez o curativo. O advogado parecia dormir, olhos fechados, a respiração pesada. Era meia noite - dez horas seguidas em baixo da agulha. A barriga de Gregório roncou.
- Está com fome?
A resposta demorou.
- Sim.
- Não tenho nada aqui, mas podemos sair até a esquina.
- Ótimo. Me dê um minuto.
Gregório organizou seu material. Retirou as luvas, a máscara, dobrou-as com cuidado, jogou-as na lixeira. Retirou o saco de lixo, fez um laço e foi até os fundos desfazer-se. Perguntou-se por um segundo se aquilo poderia ser considerado lixo cirúrgico. Acendeu um cigarro. Teve dificuldade – suas mãos tremiam. Estava aéreo.
Quando voltou o advogado estava sentado na maca, sua respiração ainda pesada, abotoando a camisa. Dobrou a manga expondo os braços finos.
Andaram para fora da loja, Gregório apagando as luzes no percurso. Trancou a porta. Começaram a caminhar.
- Conheço um hambúrguer que fica aberto até as três.
- Não posso comer carne.
Gregório ficou frustrado, depois fez a pergunta que estava evitando havia dias.
- Está doente?
- Pode-se dizer que sim.
A segunda pergunta - engasgou antes que falasse e decidiu tragá-la junto à fumaça do cigarro.
- Tem uma lanchonete aberta, mas fica um pouco mais longe. Devem vender algo sem carne.
- Perfeito.
Caminharam em silêncio por algumas quadras. Comeram sem conversar. O advogado agradeceu, se despediram e seguiram caminhos opostos.
Gregório sentiu o peso do mundo sair de suas costas. Mirou o céu.
O cinturão brilhava como pérolas no fundo de um lago escuro.

Tinha a respiração curta e acelerada, suava como se ardesse em um braseiro. De quando em quando fincava os dedos no pano da maca – Gregório não ousava pedir que ele não estragasse o forro.
A dor parecia ter piorado. Seu cliente também – as feridas da tinta estavam inchadas e vermelhas além do ponto de entrada. O corpo parecia tentar expulsar o invasor, reagindo com alergias, dores, inchaços, ou talvez a tinta, por ironia, como uma praga, espalhasse aquela marca de fogo e febre.
Gregório reparou nos curativos dos dedos, na expressão torturada, nos dentes brigando por espaço na mordida violenta. Não sabia mais o que eram lágrimas e o que era suor. Nunca havia passado por nada igual.
Depois de três espasmos, Gregório parou de procurar motivos para continuar. Tirou o pé do pedal. Jogou os braços para trás e recuou para o encosto. Não foi sua intenção, mas o tamanho da repulsa fez com que as rodinhas da cadeira a movessem para trás, parando vagarosamente.
Alguns segundos se passaram dentro de sua cabeça em total silêncio.
- O que está fazendo? – perguntou o advogado.
- Não posso continuar. Volte daqui a uma semana, quando tiver se recuperado. – disse entre suspiros.
- Não. Continue.
- Você está passando mal, ardendo em febre, já ralou os dedos de tanto fincar as unhas na minha maca. Descanse um pouco, se vista e vá pra casa.
- Não importa. Continue. – tentou aumentar o tom, mas teve a fala cortada por uma expiração involuntária.
- Se eu continuar você vai desmaiar. – disse. Respirou fundo, tirou uma luva e levou a mão à fronte. – Não acredito que estou tentando argumentar. Não existe nada mais óbvio para mim e para você: não dá pra continuar.
Apertou os olhos com as pontas dos dedos, relaxando o rosto e voltou a olhar o cliente.
Estava sentado na maca, as mãos agarradas no assento. O rosto fino e pálido, os olhos azuis apontados como armas.
- Volte e continue. – ganhou força quando se sentou. Gregório pausou antes de responder e pode ver que algo havia mudado. O ar estava pesado o estúdio parecia encolher.
- Não. Você é maluco. Vá pra casa. – sua voz tremia.
- Eu estou te pagando adiantado. Você concordou com os termos quando eu apareci aqui pela primeira vez. – apelou para o orgulho profissional.
- Não importa. Você não disse que a sua tinta levava veneno de vespa ou sei lá o que diabos. Nem quero saber.
- Você apertou minha mão. – não piscava.
- E você apertou a minha. Devia ter repensado quais detalhes do seu serviço especial você ia revelar antes de fechar negócio.
- É seu dever continuar. – retesava as pernas, seus pés se dobrando para cima e para baixo, empoleirado, num movimento maníaco.
- Você é um tarado e está me dando medo. Vá pra casa e reze para eu decidir que vou continuar a tatuagem da próxima vez que você vier.
A gárgula se levantou e alcançou o tatuador em dois passos, restringindo seus ombros com as palmas escorregadias. Gregório deu um pulo curto, o peso do homem impedindo que se movesse. Seus olhos, globos de luz turquesa, engolindo tudo ao redor em uma afronta perfurante.
- Medo? – perguntou, um riso engasgado subindo-lhe a garganta arranhada. Gregório segurava a cadeira com uma das mãos. Os dedos da outra se moviam velozes pela palma escorregadia. – Você acha que entende algo de medo? Acha que apanhar do seu pai era ruim? Acha que isso é algum tipo de piada? Que eu tenho cara de quem gosta de pagar pra sentir dor e sangrar?
Agachou-se sem afrouxar as mãos restritivas e inclinou a cabeça como uma ave psicótica.
- Pense de novo. – sua face avançou um centímetro. Gotas de sangue escorriam pelas suas costas e caiam no chão com o súbito aumento de pressão. – Você apertou minha mão. Isso não foi só um acordo verbal. Foi uma troca de confiança. Caso contrário eu não teria nem começado a me tatuar com você. – soltou as garras dos ombros de Gregório. As safiras mudaram de expressão. Seu rosto se contraiu numa mascara de desesperança e morte. – Por favor.  – seus joelhos tremeram e ele se apoiou com as mãos. – Por favor, continue.
Gregório saiu de seu transe, a adrenalina ainda alterando sua audição, nublando os sons mais graves. Seus ouvidos zuniram num tom característico – o de perder uma freqüência auditiva depois de ser golpeado com força na lateral da cabeça. Lembrou-se de seu pai e levou a mão esquerda ao rosto. Sobrevivera.
Tomou ciência da figura ainda agachada em sua frente, soluçando. Teve uma percepção perturbadora. Ele não sobreviveria – os dedos de sua mão direita se encontraram vagarosamente em um punho sólido, sua testa franziu. Num vulto, os nós de seus dedos encontraram o maxilar de seu cliente num estalo surdo e ele caiu no chão de bruços, a boca sangrando – ele não sobreviveria. Não sem o seu trabalho.
Respirou fundo. Levantou-se.
- Volte para a maca se ainda conseguir. 

[link para a parte 2]

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

[excerto de um tomo encontrado nos aposentos de andrik sardu]


Existe uma crença falha que é largamente difundida por puro descuido em toda academia de magia em que tive o prazer (e em algumas o desprazer) de colocar os pés.
Adereço-me neste momento a você, leitor, confidenciando que nunca me esforcei para negá-la abertamente em nenhum de meus trabalhos acadêmicos mais difundidos. Seria, para mim, um desserviço imenso, além de um grande inconveniente, se chegasse porventura aos ouvidos errados.
 Peço, portanto, perdão pela minha digressão, mas esclareço-a: o direito de ler este tomo restringe-se só e somente só à minha pessoa.
Caso já tenha cometido o erro de começar, saiba que meus aposentos estão sob o efeito de barreiras mágicas, dentre elas – mas não somente - a Clave Regia, o Claustro de Thalmud e o Labirinto Dedálico.
Aproveite, portanto, seu tempo.

A crença se trata de um dado memético repetido desde, suponho, a Idade Média:
Humanos não possuem talentos mágicos inatos.

Além de minha crença no poder inato ao ser humano ser antiga, e advinda de uma série de casos isolados que tratei ao longo dos anos no Hospital, um caso em particular reforçou minhas pesquisas
No século XVIII fui compelido a fazer uma visita a um pequeno vilarejo a duas horas do Condado de Gloucestershire na Inglaterra, onde haviam sido encontradas no espaço de dois anos três vítimas de Esquizofrenia por Hipersensibilidade Sensorial, um caso grave de Thelemania (perda do controle sobre os próprios poderes) que custou à vítima toda a sua família e sua criação de gado – todos assolados por uma nevasca totalmente fora de época, que além de ter congelado os bovinos mais próximos à sua residência, queimou o terreno por milhas e fez com que os demais morressem de fome e frio – e, descoberto depois de alguma pesquisa, seis combustões espontâneas, além de um sem número de desaparecimentos ao longo das décadas. Neste lugar, com a ajuda de um estudioso da metodologia de busca do baculus divinatorius, fui capaz de encontrar uma confluência de linhas telúricas.
Estas apresentavam, localmente, toda a coerência de linhas telúricas naturais. Porém, não me contentei. Consegui acesso ao acervo pessoal do Visconde, que se provou ser muito solícito. Nele encontrei um volume do século XIV – assinado por um E. Vyzart, cujo brasão tomei nota para futura pesquisa -, que retratava todo o mapa telúrico da região. Enviei meu assistente, Beric, à biblioteca nacional em busca de outros manuscrítos que pudessem confirmar que esse documento era preciso, enquanto comparava a diferença das linhas.

Recorri aos meus humildes conhecimentos da Linha do Sepulcro e fui muito bem sucedido ao descobrir um espírito atado a um abeto no local.
Transcrevo, agora, as palavras que ouvi ao forçar uma conexão com o eco:

“Os que se afastaram do abraço da vida, que agora temem as vias misteriosas do universo, nos acusam de assassinas, idólatras e indignas. Sua ignorância e negligência alcançam agora nossa paz, e a despedaça com garras de horror e repulsa.
Derramando óleo no fogo, deixando que nossa carne evapore, podemos ouvir em suas vozes ensandecidas que irão abrir a represa, e deixar que a água leve nossos lares. Deixem que gritem seu mantra fulgurante com a confiança dos tolos, pois seremos nós as libertas!
Deixem que nos rebaixem a párias até que nossos corpos sem vida se partam. Caso realmente aconteça, estará cumprido nosso dever. Ficará apenas a amarga bruma da profecia imposta.
Quando o sétimo filho do sétimo filho nascer ele trará com ele uma nova alvorada.”

A cena  pré-datava o conhecimento mágico formal de hoje, que é difundido pelos humanos. Pré-datava a Rosa-Cruz, o incidente de Salem em 1692 e até mesmo a primeira publicação do Malleus Maleficarum.
Semanas depois Beric retornou com dois outros manuscritos confirmando minha teoria de que a disposição das linhas telúricas havia sido pesadamente alterada, chegando a afetar áreas próximas à Cheltenham e grande parte de Stroud.
Não haviam no local selos druídicos, runas futhark ou qualquer tipo de alfabeto que remetesse a outros planos, nenhuma configuração cabalística, ou qualquer tipo de selo para invocar divindades.
Havia apenas um desenho ininteligível – algo totalmente desprovido de significado e que, se me é permitido presumir, estaria para qualquer sistema mágico de signos como a idioglossia está para a linguágem. Porém, era sofisticado, ou ao menos racional, pois seu traçado fazia com que a energia em fluxo pelas linhas telúricas confluísse, sem pressupor nenhuma conexão com entidades conhecidas. Aparentemente seu objetivo era concentrar a energia sem empurrá-la ou absorvê-la, como é ensinado hoje em dia.

Isso me leva a minha tese: os humanos de hoje são apenas sucessores falhos dos humanos da antiguidade. Cópias incompletas e presunçosas.
Os que conseguiram reconquistar sua autarquia conseguem abrir portas tão grandes que muitos podem enlouquecer – como foi o caso dos três esquizofrenicos retirados e levados ao Hospital – caso não haja o intermédio de uma força maior, ou de um mentor.

No primeiro capítulo de minha tese analisarei o selo e as palavras do ritual que presenciei na minha regressão ao abeto, e também a distorção efetuada nas linhas telúricas.
No segundo capítulo apresentarei os artefatos encontrados na subsequente escavação que foi iniciada pelo Sr. Koganei.
No terceiro e último capítulo, retomarei a tese desenvolvida em meu  livro Caíndo Longe da Árvore, a respeito da genealogia de espécies mágicas para apresentar uma teoria a respeito da ausência de limites para os poderes mágicos dos humanos.

Humanos – pobres humanos, odiados por demônios, apadrinhados por anjos, cobiçados por vampiros – podem ser muito mais do que parecem. Podem ser o que quiserem.

-Excerto do livro Davi e Golias: Um Ensaio Sobre Presunção
Escrito por Andrik Sardu

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

[um livro sobre dragões - excerto I]

De acordo com os registros de Azur Van’myr em seu livro Sete Corações de Realeza: A Ascenção e Queda do Império Ur-Dracônico, os raríssimos Dragões Régios que sobrevivem aos perigos do Rancor – transformando-os, possivelmente, em Volsung (os Mortos Tiranos) – e do Delírio – transformando-os em Van’aar (os Perdidos) – por tempo o suficiente para alcançar sua idade mais avançada e progredir ao pico de sua proeza mágica, são denominados Eosyth (os Utopianos). Ao invés de definhar naturalmente com a idade, sua percepção de tempo-espaço começa uma longa transformação que anuncia a chegada de seu terceiro e último cíclo de rápido crescimento possível no desenvolvimento de um Régio – durante esse tempo, o Dragão irá selecionar um local amplo e realizar uma purificação, onde ele irá, durante cem anos, apenas comer e dormir e crescer de dez a cinquenta vezes seu tamanho.

Um Dragão Régio em terceiro ciclo é extremamente territorial e fácilmente perturbável. Tentativas de comunicação com esses dragões durante seu período de purificação é amplamente considerado uma má idéia. Antes de tudo, seu típico capricho dracônico está em seu estado mais latente, tornando-o inclinado a devorar qualquer criatura que se aproxime, salvo sua própria espécie. E em segundo lugar, se sua mudança de percepção sobre o tempo-espaço já estiver avançada, suas alterações sensoriais podem inviabilizar qualquer comunicação. Isso é óbviamente agravado pelo choque de escala.

Quanto a sua escolha de refúgio para viver, Eosyth preferem paisagens abertas às usuais cavernas, devido ao seu rápido crescimento e falta de preocupação com predadores – os Eosyth estão, até hoje, acima de qualquer cadeia alimentar conhecida e são imune a qualquer doença conhecida.

Suas escamas tornam-se mais grossas e, contrastando com seu lustre e lume do segundo ciclo, suas cores ficam mais opacas, lembrando pedras brutas e antigas com uma fraca cintilação ao invés de reflexos agudos. Seus movimentos demoram-se mais a cada dia por conta de suas alterações sensoriais, enquanto seu apetite transita de criaturas de grande porte, para bestas gigantes (se presentes em seus biomas de escolha) e então árvores.

Na última metade de seu terceiro ciclo o dragão começara a retardar sua atividade, dormindo por períodos mais longos e ficando acordado por períodos cada vez menores, comendo principalmente pedras – uma vez que não existem mais alimentos que possam saciar sua fome colossal – até que ele recolha ao seu ponto de repouso final, onde se dará seu ocaso. Por seu tamanho titãnico, o dragão provavelmente ocupará toda a paisagem de sua escolha, caso não seja um oceano, deserto ou grande planície.

Então ele dormirá até que sua alma abandone seu corpo e se dissolva de volta à terra.
Talvez os Dragões Régios saibam onde os Utopianos morrem. Talvez procurem por seus túmulos através de instinto e empatia, ou talvez o espírito do Eosyth os atraia do além de seus ossos colossais em um sutil e esquecido elo de sangue. Isto não é sabido.

Mas se o explorador ousado ou o acadêmico claustrofóbico decidir lançar-se aos ventos e viajar até os refúgios e paraísos onde uma vez viveram e reinaram os Dragões Régios, e fosse em busca, faminto, pelos ossos de suas citadelas e castelos, descobriria que eles muito se assemelham aos ossos dos falecidos Utopianos.

- Spiritus Ignis, Spiritus Vitae: Um estudo sobre Dragões; Elric Swayn

sábado, 13 de outubro de 2012

[thank you]

Today I went to a Marillion concert. I doesn't really interest you that read my blog, but I was able to give the band a note, together with a gift :)

Pete Trewavas noticed my anxiety, walked over to me and I thought I could read his face saying "What the hell does this guy want" until he touched the little bag I was handing him. Then he looked at it and his face lit up - I bought them marbles.

He walked to Steve Hogarth and gave it to him. It made me very very happy.
I hope Pete didn't get me wrong - the gift was meant for all of them for all the light and epiphany their music has given me time and time again.
But I can't deny it was especially to Steve H. that has made me ne notice things about myself many many times in his lyrics. And never more than right now.

I leave here a short public "Thank you" to them, because I know I could go on and on about the beauty of their music. But that would be pointless - I have no proof, only words only words only words.

Just,
Thank you :)




Hoje eu fui no show do Marillion. Não é muito interessante pra vocês que me acompanham, mas consegui entregar um bilhete à banda junto com um presente :)

Pete Trewavas reparou o quanto eu estava afoito e andou até mim e acredito que pude ler na cara dele "Que raios esse cara quer?" até que ele pegou a trouxinha que estava na minha mão. Ele olhou o que era e sorriu - comprei bolinhas de gude.

Então ele andou até Steve Hogarth e deu a ele o pacote. O que me deixou muito feliz.
Espero que Pete não me entenda mal - o presente foi para todos eles por toda a luz e epifania que a música deles me trouxe de novo e de novo.
Mas não posso negar que foi especialmente para Steve H. que já me fez perceber coisas sobre mim muitas e muitas vezes com suas letras. E agora mais do que nunca.

Deixo aqui um curto e público "Obrigado" a eles, porque sei que eu poderia escrever sem parar sobre a beleza da música deles. Mas isso seria inútil - I have no proof, only words only words only words.

Apenas,
Obrigado.