terça-feira, 19 de novembro de 2013

[madrigal: até que a morte]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Como se veste a morte? Para o enfermo,
Um terno, em sua eterna compostura,
Traz uma maleta sem remédio ou atadura que conserte
Mas apenas a conta e um contrato
Leva-o no primeiro contato.
Não tem a mesma sorte o assassinado;
Talvez a vista com capuz, quando condenado,
enquanto o fio da guilhotina se aproxima e reluz
Revelando que a vida não faz sentido.
A morte empunha a adaga (se traído).

Ao caçado vem, de repente, com o rasgar da garganta
E vê Thanatos com cheiro de sangue - de couro, a manta
o grasnar de corvos, um colar de dente?
Quando tomado, então, por acidente -
Bate o carro, vira a balsa;
Samedi ri do acaso, o sauda com sua cartola branca
estende a mão ossuda e o convida para a valsa
oferece um charuto - livre do vício e da dependência.

Mas quando se aproxima a senescência,
Não cede ao peso de culpa ou arrependimento,
Recebe a dama sem desafeto.
Veste-a de noiva (vestido e véu)
Fita os olhos de Azrael.
Estende um anel de casamento.

[um conto sobre morte]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Era uma vez, em um reino muito distante, um Rei. Esse rei era um tirano mesquinho e cruel, e reinava toda sua terra com punho de ferro. Todos aqueles que se recusavam a pagar seus tributos tinham suas casas queimadas, suas terras salgadas e seus filhos levados para o castelo para servir como escravos.
O que impedia os camponeses de se revoltarem contra o Rei, era o fato de que ele era imortal.

Como o tirano que era, certo dia o Rei enviou comitivas de soldados para terras distantes e prometeu graças e ouro aos que lhe trouxessem a vida eterna – ou perderiam suas vidas ao retornarem. É claro, uma única comitiva retornou. Traziam algemado um sábio que, diziam, sabia como alcançar a imortalidade.
O Rei, então, o torturou até que ele o contasse e conseguiu o que queria. Uma vez que o sábio também era imortal, o Rei o aprisionou em uma jaula e o prendeu em uma torre escondida do castelo, para que ele nunca mais fosse encontrado.

Um dia, a Morte veio até o sábio e, vendo que ele havia sido aprisionado pelo Rei – o homem a quem concedera o segredo da vida eterna – perguntou o que havia acontecido. O Sábio contou-lhe então sobre o Rei tirano, sobre como ele governava seu povo frágil e como havia sido torturado até que, em sua vulnerabilidade humana, ele havia revelado seu segredo.
A Morte então, cega de raiva, começou a vagar pelos salões do palácio, invisível aos olhos de todos – afinal, só os sábios podem enxergar a Morte. Rápidamente ela descobriu que toda a família do Rei, seus filhos e netos, cobiçavam o trono do seu pai.
A Morte revelou-se ao filho mais velho, herdeiro ávido e de direito da coroa, e lhe deu um anel. Ela contou que o anel possuia o poder de matar uma única pessoa que ele tocasse - com o dedo em que o vestisse - mas que após matar uma pessoa ele deveria se desfazer do anel ou morrer, ele mesmo, ao nascer do sol.
O filho mais velho vestiu o anel em seu indicador e foi até a sala do trono. Exigindo audiência com seu pai – que, era sabido, era obcecado por jóias -, trouxe uma pérola que havia encontrado como presente. Ele entregou a pérola ao seu pai sobre uma almofada de veludo vinho, e aproveitou o momento para tocar-lhe a mão. No salão real, minutos depois, o Rei Tirano morreu, sentado no Trono.
O príncipe se desfez do anel arremessando-o pela janela, pátio afora.
A morte havia contado o segredo para o filho do meio, que já sabia que seu irmão iria se desfazer do anel e enviou espiões para saber onde.
Um a um, a Morte contou a todos do palácio: o irmão mais novo do príncipe, depois aos irmãos do Rei, depois aos generais de guerra e assim por diante.
E um a um, a Família Real fez o trabalho sujo por ela, com carícias amaldiçoadas.

Não se sabe, até hoje, se alguma outra família apareceu para tomar o trono do Rei tirano. Não se sabe porque o reino todo desapareceu, do dia para a noite. As casas, agora, estão vazias e empoeiradas, alojando apenas os pássaros cansados durante a noite, e os morcegos cegos durante o dia.
Não se tem notícia do anel. Nem da morte.

Só o Sábio viveu – acredita-se – e levou com ele o anel, que carrega em uma fina tira de couro em volta do pescoço, para que possa, ainda, abraçar as pessoas que ama.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

[baten kaitos]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Considere, por um segundo, o lugar onde você está. A cadeira onde você se senta, lendo esse panfleto. Num ônibus talvez? Ou no banco de uma praça?
Olhe ao seu redor. O que você vê?
É dia? O sol refletido na neve faz com que cubra os seus olhos sensíveis?
Ou é noite, e tudo que se afasta da luz permanece confortavelmente oculto do seu olhar? Você sente medo?
Você é treinado para temer. Não importa quem você seja.
Se for apenas uma pessoa comum, você é treinado para temer o desconhecido, e eu estou aqui para libertá-lo desse medo.
Por séculos te enganaram. Espíritos, vampiros, fadas, tudo isso é real. Eles espreitam cada canto. Riem de você quando você não está olhando. Mesmo se você olhasse diretamente para eles, talvez não os reconhecesse como são. Você é treinado para sentir medo, e o seu medo é o que te cega. Para você, um vampiro pode ser uma pessoa comum. Uma fada, só uma mancha no canto do olhar. Um espírito, só um calafrio. Sua mente vai te enganar, sempre,  porque você foi criado em uma teia de mentiras e a verdade te deixaria louco.
Você foi enganado, treinado e educado desde pequeno para acreditar que o seu medo do escuro é apenas coisa da sua mente. Está errado. O seu medo do escuro é a única coisa que te mantém vivo.
Mas não é dos vampiros e fantasmas que você tem que ter medo. Não. Nem são seus pais a quem você deve culpar. Eles são apenas vítimas, assim como você. Se você tem filhos, provávelmente repetiu a mentira que lhe contaram tanto quanto os seus pais a repetiram para você.
Os culpados são Eles. Eles pensam que são melhores que vocês. Eles tem medo da Caça-às-Bruxas, tem medo de serem descobertos. Eles enganaram todos vocês com seus ardís e encantamentos durante séculos.
Pensam que são uma casta superior. Pensam que estão te protegendo do mundo. Você, mero mortal.
Você acha que as cidades e a tecnologia tornaram a seleção artificial?
O último Dragão selado por magos na Moldova em 1847, sob o pretexto de que são muito perigosos. Florestas foram queimadas por conterem muitos seres de Arcádia – fadas, trolls, sílfides.
Eles acreditam que vocês, humanos comuns, não possuem talento mágico. Estão errados novamente. Todos vocês tem poder, e são privados dele por essa jaula que os blinda de todos os estímulos certos, impedem vocês de receberem sua herança de magia. Todos os seus predadores estão do lado de fora da jaula, e enquanto isso a humanidade cresçe como uma grande sanguessuga obesa e virulenta, em uma ditadura da mediocridade.
A grandeza tem um preço, certamente, mas é um preço justo.
Agora que sabe, você tem a escolha. Abra seus olhos e busque a verdade, mesmo que isso o mate, ou escolha perecer na cama de mentiras que já estava feita desde antes do dia em que você nasceu.
Se você for um Mago, e pensa que esta mensagem não é para você, é mais ingênuo do que pensa. Você não é um d’Eles. Esta mensagem também é para você.
E você não é digno. Mesmo sabendo da existência do sobrenatural, você escolheu não enxergar.
Mas no fundo, você sabe. Aquele som. Sim, aquele som que você ouve, no silêncio do interior do seu templo, quando é tarde da noite e se recusam a entrar até mesmo os espíritos mais rudimentares. Aquele som do seu feitiço falhando fútilmente, quando você tinha certeza de que conseguiria.
São as correntes.
Você consegue ouví-las? Clink-clank-clink-clank, a cada minuto do seu dia, arrastando atrás de você.
Toda vez que veste um sobretudo para cobrir seus estigmas, toda vez que coloca óculos escuros porque sua magia prevalece sobre sua matéria e seus olhos não tem um colorido “humano”, você está perpetuando a calúnia.
Eles mentiram para você também. O Leviatã não está la fora.

Você está junto conosco dentro do Estômago dele.

Se a luz da verdade for demais para você, tape os olhos. A Alvorada está chegando.

- Russel, Koloman

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

[o sucateiro]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

A planície jazia em paz e silêncio. Já haviam passado os exércitos de guerreiros armados de espadas e machados, vestidos com armaduras de ferro, cotas de malha e capacetes .
Já era finda a guerra, há anos, mas o campo já havia se tornado infértil com o peso dos cavalos e o sangue. Sua poeira fina se elevava a cada brisa, como carregada pelos espíritos dos mortos.
Havia quem olhasse aquela cena, o ferro espalhado pelo solo, os cacos de lâminas antigas e as escamas e placas separadas de suas armaduras para dar lugar à lâminas que derrubaram grandes guerreiros, heróis, lendas – cada um apenas um soldado, cada um apenas mais uma contingência.
Não o sucateiro. Caminhava com ajuda sua bengala e sua mochila de couro desbotada pelo solo rijo, se protegendo do sol com um capuz. Estrepitando com cada passo, os restos de metal que carregava em sua bolsa. Os fantasmas eram seus amigos e a antiga guerra seu sustento.
Herdara sua casa - contava seu avô, com com suas mãos calejadas e uma cicatriz no lábio – de ancestrais nobres. Contava que um dia aquela terra havia sido regada por córregos, e que qualquer semente lançada ao solo florescia e dava frutos. Que imperava, até onde os olhos podiam ver, sua família, de seu castelo de mármore, suas roupas de seda e tudo em volta era vilarejo, com camponeses felizes.
Não mais. Não depois da guerra.
O sucateiro não vivera pra ver aquilo. Não haviam registros. E mesmo optando por acreditar, pouco daquilo lhe importava. O que importava era apenas seu filho e a comida que comeriam naquela estação.
Caminhava a planície com sua mochila de couro desbotado, seu capuz, tateando com sua bengala o solo seco. Tomou mais um gole comedido de água. Era dia de colheita.
Agachou-se próximo à ruína de uma casa e pegou uma folha de ferro torcido, erodido pelo vento e pelas tempestades de areia. Descascou um pouco da ferrugem com unhas gastas e a cabaça, que fora capacete, começou a se desfazer. Jogou o elmo para longe e continuou sua caminhada lenta.
Assobiava e caminhava, batucando seu cajado contra o chão para marcar o ritmo. Seria um inverno longo, e não podia se dar ao luxo de voltar para casa sem encontrar ao menos mais algumas peças. O sol a pino esquentava sua cabeça, e sua barriga roncava. Em casa, ele e seu filho já começavam a passar fome.
Sua bota atingiu algo duro.
Olhou para baixo, esperançoso, para encontrar apenas a fivela de um cinto, ainda presa a uma fina tira de couro gasto. Chutou-a com raiva e acabou rasgando a lateral de sua bota.
O sucateiro precisava de mais, e o sol já começava a se por. Sabia que o dia chegaria, em que o que os espólios esquecidos da batalha acabariam, que teria coletado tudo que era humanamente possível. Mas não queria que aquele dia fosse hoje.
Alcançou seu cantil para mais um gole de água e ele foi o último. O sucateiro, resignado, começou sua marcha tropêga de volta para casa. Teria que voltar pela teceira vez à planície no dia seguinte.
Voltando, encontrou uma duna baixa de areia branca e fina. Olhou para o horizonte e decidiu que viria uma tempestade, que provavelmente a carregaria para outro lugar. Começou a tatear a duna, afundando seu cajado na areia até que atingiu algo sólido.
Virou-o de ponta cabeça. O topo possuia uma protrusão no formato de um gancho, feita de ferro fundido, preso à madeira do corpo com pregos e tiras de couro de coiote. Afundou o gancho na areia, moveu a ponta um pouco encaixando o gancho sob o objeto e puxou.
Uma espada emergiu, e o sucateiro sorriu. A lâmina parecia em bom estado, e ainda possuia algum lume contra o sol da planície. O couro da empunhadura já havia se desgastado e desprendido há tempos. Olhou com mais cuidado viu o resquício ilegível do sinete de um ferreiro. Ferro de qualidade, usado por cavaleiros de alta patente.
O sucateiro fundia o metal de baixa qualidade das armaduras para fazer panelas e vender aos demais camponeses. Às vezes até martelos ou outros utensílios de metal, quando o ferro ainda estava integro o suficiente para aguentar trabalhos mais detalhados. Mas espadas eram mais difíceis de encontrar. Os soldados do rei, quando de passagem, pagavam dez peças de prata por cada lâmina de soldado, e até cem peças de ouro pela espada de um general.
Era seu ofício, dia após dia, colher o ferro que emergia daquela planície sangrenta e assombrada. Tirar seu sustento do infortúnio de milhares. Depois de todos os seus propósitos nefastos serem servidos, transformar aquele ferro sangrento em algo bom.
Mas mesmo que a maioria dos derrotados naquela batalha tivessem morrido antes que seu pai se deitasse com sua primeira mulher, o sucateiro ouvia, por vezes, o impacto entre espadas e o cavalgar de cavalos. Quando era noite, talvez até o grito de carga das tropas dianteiras.

Mas não naquela noite. Aquela noite dormiria tranquilo. Pôs-se a voltar para casa, com sua milésima lâmina.