sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

[glifos e grafos]

Ter me formado em Design, a despeito da minha falta de habilidade com desenho, foi essencial na minha formação como escritor - algo que somente me sei, no momento, já que não tenho livros publicados. As peculiaridades da captação da informação pela imagem são muitas, e estudá-las acabou me ajudando a colocar algo em contraponto com a maneira como as pessoas absorvem o texto.

Cheguei, tem muito tempo, à conclusão de que as pessoas não gostam de ler. “Uma imagem vale mais que mil palavras”, afinal – ler mil palavras exige muito mais tempo e dedicação do que olhar uma imagem. Talvez por isso exista hoje uma rede tão grande de emissores de informação compartilhando gifs de gatos e memes.
Não digo isso em detrimento do valor da imagem, seja ela fotografia ou pintura, mas temo que nos dias atuais tenhamos chegado a uma cultura da informação como “fast-food” – informação científica, jornalística ou mesmo fictícia. Isso foi crucial pra que eu reparasse que a absorção do conteúdo literário toma muito mais tempo do que a absorção do conteúdo gráfico.
O conteúdo gráfico é chamativo o suficiente pra atrair o primeiro olhar. Ele grita, bate na sua porta e está lá. A análise da forma precede a análise do conteúdo.

Mas nem sempre é a forma que comunica. Existem limites para a forma.

Gosto de citar esse vídeo do Richard Seymour (em especial  o trecho entre 5:05 e 5:50, mas o vídeo é inteiro sensacional):




“Is it beautiful now?”
O conhecimento da narrativa por trás da imagem traz uma beleza totalmente nova. Essa imagem só vale mais do que mil palavras porque você passa a conhecer as palavras por trás dela.

Arrisquei, recentemente, participar dos Desafios 2 Minds. Mas diferente da proposta – que é fazer um desenho ou pintura – decidi cumprir os desafios escrevendo em 30 minutos um pequeno texto ou poesia. Me deparei com uma dificuldade quase intransponível que é formular o conteúdo pra escrever um texto e redigí-lo se preocupando com a forma em 30 minutos.

Essa é a diferença crucial entre a informação verbal e a informação visual. A informação visual "depende" de um conhecimento emocional prévio do leitor. A informação verbal pode te aproximar muito do conteúdo, de maneira que você possa se relacionar com ele, mas requer dedicação.

A imagem é primáriamente formal, e a forma está relacionada com a técnica – a composição, a habilidade do artista. Se o conteúdo de uma imagem é raso, você ainda pode apreciá-la pelas suas formas e cores.
É quase imediato “sentir” a imagem. 

A informação verbal possui uma carga forte de forma – se ela é bem escrita, possui cadência, ritmo, se as palavras são bem empregadas – mas ela é intrinsecamente dependente do conteúdo. Se o conteúdo não for interessante, não existe remédio para o seu texto.

Talvez por isso, e pela qualidade relacional do conteúdo, existam tantos autores que carecem de técnica se dizendo escritores. Porém, a falta de conteúdo – por este depender não só da habilidade do escritor ao produzí-lo, mas também da carga subjetiva vinda da relação entre ele e o leitor – é mascarável. Se o autor te conta a história que você acha que quer ouvir, talvez você fique satisfeito.

Porém, na minha opinião, o leitor experiente quer ser surpreendido. A maestria passa a estar no autor que te conta uma história que você não sabia que queria ler, mas depois de lida você sabe que nunca mais será o mesmo.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

[madrigal: até que a morte]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Como se veste a morte? Para o enfermo,
Um terno, em sua eterna compostura,
Traz uma maleta sem remédio ou atadura que conserte
Mas apenas a conta e um contrato
Leva-o no primeiro contato.
Não tem a mesma sorte o assassinado;
Talvez a vista com capuz, quando condenado,
enquanto o fio da guilhotina se aproxima e reluz
Revelando que a vida não faz sentido.
A morte empunha a adaga (se traído).

Ao caçado vem, de repente, com o rasgar da garganta
E vê Thanatos com cheiro de sangue - de couro, a manta
o grasnar de corvos, um colar de dente?
Quando tomado, então, por acidente -
Bate o carro, vira a balsa;
Samedi ri do acaso, o sauda com sua cartola branca
estende a mão ossuda e o convida para a valsa
oferece um charuto - livre do vício e da dependência.

Mas quando se aproxima a senescência,
Não cede ao peso de culpa ou arrependimento,
Recebe a dama sem desafeto.
Veste-a de noiva (vestido e véu)
Fita os olhos de Azrael.
Estende um anel de casamento.

[um conto sobre morte]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Era uma vez, em um reino muito distante, um Rei. Esse rei era um tirano mesquinho e cruel, e reinava toda sua terra com punho de ferro. Todos aqueles que se recusavam a pagar seus tributos tinham suas casas queimadas, suas terras salgadas e seus filhos levados para o castelo para servir como escravos.
O que impedia os camponeses de se revoltarem contra o Rei, era o fato de que ele era imortal.

Como o tirano que era, certo dia o Rei enviou comitivas de soldados para terras distantes e prometeu graças e ouro aos que lhe trouxessem a vida eterna – ou perderiam suas vidas ao retornarem. É claro, uma única comitiva retornou. Traziam algemado um sábio que, diziam, sabia como alcançar a imortalidade.
O Rei, então, o torturou até que ele o contasse e conseguiu o que queria. Uma vez que o sábio também era imortal, o Rei o aprisionou em uma jaula e o prendeu em uma torre escondida do castelo, para que ele nunca mais fosse encontrado.

Um dia, a Morte veio até o sábio e, vendo que ele havia sido aprisionado pelo Rei – o homem a quem concedera o segredo da vida eterna – perguntou o que havia acontecido. O Sábio contou-lhe então sobre o Rei tirano, sobre como ele governava seu povo frágil e como havia sido torturado até que, em sua vulnerabilidade humana, ele havia revelado seu segredo.
A Morte então, cega de raiva, começou a vagar pelos salões do palácio, invisível aos olhos de todos – afinal, só os sábios podem enxergar a Morte. Rápidamente ela descobriu que toda a família do Rei, seus filhos e netos, cobiçavam o trono do seu pai.
A Morte revelou-se ao filho mais velho, herdeiro ávido e de direito da coroa, e lhe deu um anel. Ela contou que o anel possuia o poder de matar uma única pessoa que ele tocasse - com o dedo em que o vestisse - mas que após matar uma pessoa ele deveria se desfazer do anel ou morrer, ele mesmo, ao nascer do sol.
O filho mais velho vestiu o anel em seu indicador e foi até a sala do trono. Exigindo audiência com seu pai – que, era sabido, era obcecado por jóias -, trouxe uma pérola que havia encontrado como presente. Ele entregou a pérola ao seu pai sobre uma almofada de veludo vinho, e aproveitou o momento para tocar-lhe a mão. No salão real, minutos depois, o Rei Tirano morreu, sentado no Trono.
O príncipe se desfez do anel arremessando-o pela janela, pátio afora.
A morte havia contado o segredo para o filho do meio, que já sabia que seu irmão iria se desfazer do anel e enviou espiões para saber onde.
Um a um, a Morte contou a todos do palácio: o irmão mais novo do príncipe, depois aos irmãos do Rei, depois aos generais de guerra e assim por diante.
E um a um, a Família Real fez o trabalho sujo por ela, com carícias amaldiçoadas.

Não se sabe, até hoje, se alguma outra família apareceu para tomar o trono do Rei tirano. Não se sabe porque o reino todo desapareceu, do dia para a noite. As casas, agora, estão vazias e empoeiradas, alojando apenas os pássaros cansados durante a noite, e os morcegos cegos durante o dia.
Não se tem notícia do anel. Nem da morte.

Só o Sábio viveu – acredita-se – e levou com ele o anel, que carrega em uma fina tira de couro em volta do pescoço, para que possa, ainda, abraçar as pessoas que ama.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

[baten kaitos]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

Considere, por um segundo, o lugar onde você está. A cadeira onde você se senta, lendo esse panfleto. Num ônibus talvez? Ou no banco de uma praça?
Olhe ao seu redor. O que você vê?
É dia? O sol refletido na neve faz com que cubra os seus olhos sensíveis?
Ou é noite, e tudo que se afasta da luz permanece confortavelmente oculto do seu olhar? Você sente medo?
Você é treinado para temer. Não importa quem você seja.
Se for apenas uma pessoa comum, você é treinado para temer o desconhecido, e eu estou aqui para libertá-lo desse medo.
Por séculos te enganaram. Espíritos, vampiros, fadas, tudo isso é real. Eles espreitam cada canto. Riem de você quando você não está olhando. Mesmo se você olhasse diretamente para eles, talvez não os reconhecesse como são. Você é treinado para sentir medo, e o seu medo é o que te cega. Para você, um vampiro pode ser uma pessoa comum. Uma fada, só uma mancha no canto do olhar. Um espírito, só um calafrio. Sua mente vai te enganar, sempre,  porque você foi criado em uma teia de mentiras e a verdade te deixaria louco.
Você foi enganado, treinado e educado desde pequeno para acreditar que o seu medo do escuro é apenas coisa da sua mente. Está errado. O seu medo do escuro é a única coisa que te mantém vivo.
Mas não é dos vampiros e fantasmas que você tem que ter medo. Não. Nem são seus pais a quem você deve culpar. Eles são apenas vítimas, assim como você. Se você tem filhos, provávelmente repetiu a mentira que lhe contaram tanto quanto os seus pais a repetiram para você.
Os culpados são Eles. Eles pensam que são melhores que vocês. Eles tem medo da Caça-às-Bruxas, tem medo de serem descobertos. Eles enganaram todos vocês com seus ardís e encantamentos durante séculos.
Pensam que são uma casta superior. Pensam que estão te protegendo do mundo. Você, mero mortal.
Você acha que as cidades e a tecnologia tornaram a seleção artificial?
O último Dragão selado por magos na Moldova em 1847, sob o pretexto de que são muito perigosos. Florestas foram queimadas por conterem muitos seres de Arcádia – fadas, trolls, sílfides.
Eles acreditam que vocês, humanos comuns, não possuem talento mágico. Estão errados novamente. Todos vocês tem poder, e são privados dele por essa jaula que os blinda de todos os estímulos certos, impedem vocês de receberem sua herança de magia. Todos os seus predadores estão do lado de fora da jaula, e enquanto isso a humanidade cresçe como uma grande sanguessuga obesa e virulenta, em uma ditadura da mediocridade.
A grandeza tem um preço, certamente, mas é um preço justo.
Agora que sabe, você tem a escolha. Abra seus olhos e busque a verdade, mesmo que isso o mate, ou escolha perecer na cama de mentiras que já estava feita desde antes do dia em que você nasceu.
Se você for um Mago, e pensa que esta mensagem não é para você, é mais ingênuo do que pensa. Você não é um d’Eles. Esta mensagem também é para você.
E você não é digno. Mesmo sabendo da existência do sobrenatural, você escolheu não enxergar.
Mas no fundo, você sabe. Aquele som. Sim, aquele som que você ouve, no silêncio do interior do seu templo, quando é tarde da noite e se recusam a entrar até mesmo os espíritos mais rudimentares. Aquele som do seu feitiço falhando fútilmente, quando você tinha certeza de que conseguiria.
São as correntes.
Você consegue ouví-las? Clink-clank-clink-clank, a cada minuto do seu dia, arrastando atrás de você.
Toda vez que veste um sobretudo para cobrir seus estigmas, toda vez que coloca óculos escuros porque sua magia prevalece sobre sua matéria e seus olhos não tem um colorido “humano”, você está perpetuando a calúnia.
Eles mentiram para você também. O Leviatã não está la fora.

Você está junto conosco dentro do Estômago dele.

Se a luz da verdade for demais para você, tape os olhos. A Alvorada está chegando.

- Russel, Koloman

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

[o sucateiro]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

A planície jazia em paz e silêncio. Já haviam passado os exércitos de guerreiros armados de espadas e machados, vestidos com armaduras de ferro, cotas de malha e capacetes .
Já era finda a guerra, há anos, mas o campo já havia se tornado infértil com o peso dos cavalos e o sangue. Sua poeira fina se elevava a cada brisa, como carregada pelos espíritos dos mortos.
Havia quem olhasse aquela cena, o ferro espalhado pelo solo, os cacos de lâminas antigas e as escamas e placas separadas de suas armaduras para dar lugar à lâminas que derrubaram grandes guerreiros, heróis, lendas – cada um apenas um soldado, cada um apenas mais uma contingência.
Não o sucateiro. Caminhava com ajuda sua bengala e sua mochila de couro desbotada pelo solo rijo, se protegendo do sol com um capuz. Estrepitando com cada passo, os restos de metal que carregava em sua bolsa. Os fantasmas eram seus amigos e a antiga guerra seu sustento.
Herdara sua casa - contava seu avô, com com suas mãos calejadas e uma cicatriz no lábio – de ancestrais nobres. Contava que um dia aquela terra havia sido regada por córregos, e que qualquer semente lançada ao solo florescia e dava frutos. Que imperava, até onde os olhos podiam ver, sua família, de seu castelo de mármore, suas roupas de seda e tudo em volta era vilarejo, com camponeses felizes.
Não mais. Não depois da guerra.
O sucateiro não vivera pra ver aquilo. Não haviam registros. E mesmo optando por acreditar, pouco daquilo lhe importava. O que importava era apenas seu filho e a comida que comeriam naquela estação.
Caminhava a planície com sua mochila de couro desbotado, seu capuz, tateando com sua bengala o solo seco. Tomou mais um gole comedido de água. Era dia de colheita.
Agachou-se próximo à ruína de uma casa e pegou uma folha de ferro torcido, erodido pelo vento e pelas tempestades de areia. Descascou um pouco da ferrugem com unhas gastas e a cabaça, que fora capacete, começou a se desfazer. Jogou o elmo para longe e continuou sua caminhada lenta.
Assobiava e caminhava, batucando seu cajado contra o chão para marcar o ritmo. Seria um inverno longo, e não podia se dar ao luxo de voltar para casa sem encontrar ao menos mais algumas peças. O sol a pino esquentava sua cabeça, e sua barriga roncava. Em casa, ele e seu filho já começavam a passar fome.
Sua bota atingiu algo duro.
Olhou para baixo, esperançoso, para encontrar apenas a fivela de um cinto, ainda presa a uma fina tira de couro gasto. Chutou-a com raiva e acabou rasgando a lateral de sua bota.
O sucateiro precisava de mais, e o sol já começava a se por. Sabia que o dia chegaria, em que o que os espólios esquecidos da batalha acabariam, que teria coletado tudo que era humanamente possível. Mas não queria que aquele dia fosse hoje.
Alcançou seu cantil para mais um gole de água e ele foi o último. O sucateiro, resignado, começou sua marcha tropêga de volta para casa. Teria que voltar pela teceira vez à planície no dia seguinte.
Voltando, encontrou uma duna baixa de areia branca e fina. Olhou para o horizonte e decidiu que viria uma tempestade, que provavelmente a carregaria para outro lugar. Começou a tatear a duna, afundando seu cajado na areia até que atingiu algo sólido.
Virou-o de ponta cabeça. O topo possuia uma protrusão no formato de um gancho, feita de ferro fundido, preso à madeira do corpo com pregos e tiras de couro de coiote. Afundou o gancho na areia, moveu a ponta um pouco encaixando o gancho sob o objeto e puxou.
Uma espada emergiu, e o sucateiro sorriu. A lâmina parecia em bom estado, e ainda possuia algum lume contra o sol da planície. O couro da empunhadura já havia se desgastado e desprendido há tempos. Olhou com mais cuidado viu o resquício ilegível do sinete de um ferreiro. Ferro de qualidade, usado por cavaleiros de alta patente.
O sucateiro fundia o metal de baixa qualidade das armaduras para fazer panelas e vender aos demais camponeses. Às vezes até martelos ou outros utensílios de metal, quando o ferro ainda estava integro o suficiente para aguentar trabalhos mais detalhados. Mas espadas eram mais difíceis de encontrar. Os soldados do rei, quando de passagem, pagavam dez peças de prata por cada lâmina de soldado, e até cem peças de ouro pela espada de um general.
Era seu ofício, dia após dia, colher o ferro que emergia daquela planície sangrenta e assombrada. Tirar seu sustento do infortúnio de milhares. Depois de todos os seus propósitos nefastos serem servidos, transformar aquele ferro sangrento em algo bom.
Mas mesmo que a maioria dos derrotados naquela batalha tivessem morrido antes que seu pai se deitasse com sua primeira mulher, o sucateiro ouvia, por vezes, o impacto entre espadas e o cavalgar de cavalos. Quando era noite, talvez até o grito de carga das tropas dianteiras.

Mas não naquela noite. Aquela noite dormiria tranquilo. Pôs-se a voltar para casa, com sua milésima lâmina.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

[monsters]

(Quebrando brevemente o decoro de só postar em português)


Did you ever dream of monsters?
Picture them now:

Do they bite? do they have claws? Teeth?
Do they howl to the moon? Like a dire hound?
Do they roar? Do they screech?
Do they make a sound?
Do they crave for blood? do they hunt for flesh?
Can they smell your fear?
Do they come from the woods? From the deep dark sea?
Do they come from beneath? Are they from some hell?
Is hell near?
Do they slither? Run? Pounce? Reap?
Do they do it for fun? Do they make you weep?
Tentacles? Scales? Wings?
Feather or leather or uneartlhy things?
Do they pass through walls? Do they tear down doors? Do they wait outside?
Do they chase you until you can't run or hide?
Do they sprout from nightmares? Do they creep from the floorboards?
Do they live in the woods? Do they come out of cupboards?
Is there blood when they come? Or the sound of drums?
Thunder and lightning? Flickering lights?
Dogs barking?
Are they huge? Tiny and many? Gigantic?
Do they spirit children away?
Do they haunt old houses?
Do they burn men down in their beds?
Do they eat them whole?
Do they leave a trace?
Do they look like beasts? Do they look like demons?
Do they look like dragon and scylla and kraken? Unnamable things?

Can you even understand?
Can you see them? Can you hear them?
Can you hear them now?
Can you feel them now?
Do you feel them now? In the shoreless sea?
Do they look like me?
Do they look like you?

Did you ever dream of monsters?

Did you ever sleep?

quarta-feira, 10 de abril de 2013

[notas encontradas nos aposentos de andrik sardu]


Redijo esse breve documento para me recordar de coisas às quais talvez eu não possa dar atenção no presente momento.
Estive, nesses últimos meses, prestando assistência à Aresius Holzwarth em uma expedição à ruínas recém descobertas às margens do Mar Negro, mais especificamente na Romênia. As ruínas apresentam aspectos que remetem ao povo de Dácia com leves influências celtas.
O que me parece incongruente, é que a idade da ruína parece ultrapassar a idade do povo dácio em si, e ainda mais a época da invasão celta.

Porém, me preocupam na realidade, não suas incongruências históricas, mas sim uma congruência que, à meus olhos que muito já viram, não pode ser dispensada como mera coincidência.
Anos atrás, em um sítio arqueológico bastante afastado – se a memória não me escapa (e ela raramente o faz) em uma pequena gruta na ilha de Tory – me deparei com murais gravados e algumas páginas soltas contando uma história bastante particular.

Contava a história de uma divindade menor – talvez oriunda de alguma derivação dos Fomori –, a quem eu e meus então colegas carinhosamente batizamos de “Deus da Inconveniência”, chamada Svonnov. Inconveniência porque esse deus parecia ser regido pelo desejo de provar de todos os néctares, comer de todas as comidas, ver todas as paisagens e ouvir todas as conversas e todos os sons.
Na história encontrava-se em curso uma grande festa do panteão. Após comer os pratos de entrada praticamente sozinho e se intrometer em conversas onde não havia sido convidado, os demais deuses – e o anfitrião, Kol, uma entidade tríplice e um tanto complicada de se definir com tão pouca informação – concordaram que ele deveria ser expulso do salão de jantar, e que deveria ser permitido ao nosso Deus Inconveniente somente o trânsito pelo salão de festas para que ele pudesse assistir às danças e ouvir a música.
Feito isso, Svonnov começou a passear pelo palácio a esmo, procurando novas sensações para sentir. Por acaso ou destino sádico, Svonnov entrou nos aposentos de Elonne, a frágil deusa da Paz e irmã do anfitrião Kol. Elonne, que era feita de vidro, foi confinada a seus aposentos para que permanecesse intacta.
A este ponto o leitor atento já deve ter adivinhado que, conforme esperado de nosso Deus da Inconveniência, a coisa errada seria feita.
Svonnov, sedento, tocou-a.
A deusa da paz caiu e quebrou-se em mil pedaços, e o som foi ouvido por todo o castelo e por toda a extensão da terra dos deuses.
Kol, tomado pela ira e a sede de vingança, capturou Svonnov e desmembrou-o e lançou seus pedaços sobre a terra.
Nesta cosmogonia os pedaços de Svonnov pareciam ter dado origem aos humanos e ser a justificativa para sua interminável sede e ambição.

Aqui, nas ruínas da Romênia, me deparo com uma sequência de quadros similar. Porém, o último quadro exibe uma imagem um tanto diferente.
Os humanos, abaixo da cobertura de nuvens, assistem a queda das partes de Svonnov.

Como arquimagos sabemos que a maioria das cosmogonias são – em algum nível – verdade, me pergunto então que fim terá sido dado aos restos de Svonnov, uma vez que já haviam humanos para  vislumbrá-los despencando dos céus.

- Notas encontradas nos aposentos de Andrik Sardu

segunda-feira, 18 de março de 2013

[tesoura sem ponta]


Não bata, não,
não espere que ceda.
A pele pode ser de seda
mas abaixa a pata, não bata.
De nada adianta.
Pode arder, mas não parte.
Não bata que fere.
Ouça. Não descarte.
Não grite nem se desespere,
só fecha -
a boca.
Que o silêncio impere.
Não grite. Não fale.
Não insista que pare -
não bata.
Não - interrompa.
Sem pirraça.
Faz silêncio.
Uma vez.

Dá cá a tesoura,
deixa eu te contar:
A culpa não é sua.
Mas é teu fardo.
Então abaixa a pata, e não bata,
que dói e pega mal.

Pro seu lado.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

[de estrelas (e pedra submersa) - parte 2]

[link para a parte 1]


se não chegar a nos perceber:
Não saberia dizer se as próximas semanas passaram velozes ou se arrastaram, mas quando se deu conta de sua posição eram onze e meia da noite e havia o barulho de algum cão vadio revirando latas de lixo. Terminava seu tormento semanal como máquina: insensibilizado, especializado, fechando a ultima das seções da coroa externa. Faltando espaço nas costas, o desenho invadia as costelas pelas laterais do corpo. A cicatrização era rápida e agressiva, o misto de pintura e entalhe caminhando debaixo da pele.
Terminou de preencher com a tinta estranha o ultimo glifo. Inspirou profunda e lentamente. Expirou a bruma pesada da angústia, sentindo seu braço fraquejar e seus olhos pesarem. Tonteou e voltou a si algumas vezes. Colocou a máquina sobre a mesa e apoiou a testa na lateral da maca, afastando o resto do corpo com o deslizar da cadeira.
Gregório já havia cogitado fechar o estúdio e arrumar um emprego decente diversas vezes. Pouco antes do amaldiçoado dia em que aquele homem cruzou a porta de vidro, chegou a colocar as contas na ponta do lápis para procurar outras possibilidades. Mas onde diabos iriam contratá-lo? Não alguém como ele.
Apesar da profissão, Gregório tinha poucas tatuagens. Se colocasse uma roupa chique sobraria pouco o que questionar de sua seriedade. Porém quando lhe perguntassem sobre sua experiência profissional diria “trabalhei como tatuador durante vinte e um anos, desde os dezessete” e quando perguntassem o que mais, diria “trabalhei como balconista da biblioteca municipal durante dois anos, dos quinze aos dezessete”.
Seriam camadas e camadas de falsidade entre dentes – nojo e pena revirando-se por dentro, deixando escapar apenas um sorriso sarcástico, coberto por um sorriso condescendente, coberto pelo melhor sorriso impenetrável tal qual um jogador de pôquer. Entraremos em contato. Tapa nas costas. Escolta à saída. Aperto de mão.
Depois nada.

Gregório acordou de madrugada quando, em sonho ou memória, escutou gritos afogados e o ranger de dentes. Suava. Sentou-se, o lençol empapado descolando de suas costas. Perguntou se fora ele a gritar durante o sono.
Cenas desatadas de um pesadelo recobriram seus olhos no breu do quarto. Sangue, aço, unhas, lodo, plástico. Um sombra sádica da cor da angústia, densa como noite líquida, invasiva e sufocante. Respirava mal. Abriu a janela.
A cidade dormia. Seu lado da cidade não tinha muitas opções a não ser o aconchego das camas quando chegava a noite. Ao longe, o halo de luz que recobria o centro competia com um céu nublado e cinzento, os prédios desregulando o horizonte em uma bocarra de dentes tortos.
Desceu as escadas se orientando com uma mão calejada na parede. Passou pelo corredor e entrou no banheiro, tateando pelo interruptor. Acendeu a luz, e foi ofuscado pela iluminação repentina, a vista entrecortada pelos borrões brancos. Aguardou um segundo, abriu o armário embutido no espelho e pensou ouvir um tinido estranho.
Encarou a si mesmo durante algum tempo. Suas olheiras estavam fundas, sua barba por fazer. Qualquer majestade que um dia tivera, qualquer juventude, parecia ter se esvaído.
Seu rosto, percebeu, não tinha cicatrizes. Não tinha cicatrizes gritantes, apesar de todas as brigas em bares, de todas as surras quando criança. Mas ainda assim, seu rosto exibia o tipo de marca suave, de erosão irreverente, que extinguia qualquer dúvida.
Ligou a água da pia e abaixou-se para as mãos cheias. Quando abriu os olhos viu algo através do gotejar das sobrancelhas. Uma familiar chave cor de cobre, esverdeada com o tempo, balançava na água corrente, presa no ralo.
Estendeu os dedos dormentes e pegou-a, examinando mais de perto.

A fechadura abriu-se com um clique, a porta com um ranger incômodo. Poeira e panos. As janelas estavam fechadas, as cortinas frustrando a luz vinda da rua. Um cheiro ocre levantava-se das tábuas do chão, manchadas de tinta.
Havia telas cobertas com panos que um dia foram brancos, esquecidas. Um cavalete grande sustentava uma tela parcialmente pintada de preto. Gregório sabia que se examinada com cuidado e sob a luz a tinta na realidade exibia um azul profundo. Sua mistura particular.
Tentou acender as luzes. Uma segunda, terceira vez. A lâmpada estava queimada.
Avançou para a tela no cavalete e tocou-a com a ponta do dedo, sentindo a textura do tecido e da tinta seca. Virou-se para o lado e puxou o pano que cobria uma das telas encostadas na parede. Olhou-a por um segundo.
Ficou impressionado com a paciência que tinha quando era mais novo. Cada estrela da composição parecia diferente da outra, e todas formavam sempre movimentos em ondas, perfeitamente discerníveis sob o fundo escuro.
Sabia que aquele tempo havia passado, junto com os livros de astronomia. Conformara-se com o fato de que não poderia ser um astronauta. Aproveitou-se de seu olho que deixava pouco escapar e de sua mão firme e decidiu criar o espaço ao invés de visitá-lo.
Da tela para a pele fora uma questão de necessidade e perspicácia. Então, uma década e meia atrás, deixou de cultivar aquela paciência de graça.
Dúvidas se instalaram aquela noite, mudas. Gregório saiu do quarto, trancou a porta barulhenta e subiu as escadas.
Colocou a chave em cima do criado-mudo e voltou a dormir.

O sino da porta tocou e o homem que entrou parecia ter tomado um bom café da manhã. O advogado se esforçava para andar com a postura correta, mas seus ombros ainda insistiam no desânimo. De uma forma ou de outra parecia, se não melhor, inspirado.
Tirou o paletó escuro amarrotado e pendurou num gancho na parede do estúdio enquanto Gregório preparava o material, apreensivo, uma garrafa de uísque barato com um rótulo vermelho gritava por atenção entre os materiais. Não precisou se virar para ver que o advogado sufocou um riso ao notá-la.
- Não vou beber.
- Talvez eu vá.
- Você não vai me tatuar bêbado.
- Talvez eu vá.
Silêncio.
- Já estou na ilegalidade usando essa tinta maluca. Não tente me recriminar por falta de profissionalismo.
Mais silêncio.
- É preciso muito mais que um copo de uísque pra me deixar bêbado.
O advogado levantou uma sobrancelha.
- Deixe a maldita garrafa aí. Não está nem aberta.
A sessão seguiu, o advogado ainda calado, ainda se contraindo, ainda suando. Os dentes ainda trincavam, mas a dor parecia mais suportável. Talvez ele simplesmente tivesse se acostumado.
Enquanto isso, o desenho seguia tomando o lugar da pele, indo e vindo. Ao seguir as linhas por vezes se sentia fazendo uma costura ao invés de uma tatuagem.
- Você ganhou cor. Está melhor daquela doença?
- Ela está terminando.
Fechou naquele dia mais duas divisões do círculo interno. Gregório se acostumava com a as formas e distâncias entre os ícones, precisando de cada vez menos consultas. Símbolos se repetiam e giravam, aumentavam e diminuíam, mas uma lógica cega era perceptível nas marcas estranhas.
Como a das estrelas.
Terminou mais rápido naquele dia, não sabia dizer se pela expertise ou pelo medo de passar novamente pelo que havia passado semanas atrás.
A coroa interna era menor, aliviou-se.

Quando vamos marcar a próxima? – perguntou Gregório, menos tenso do que antes.
Seu cliente demorou a responder, mas já estava ficando acostumado com os silêncios quase constrangedores. Esperou paciente que se sentasse, abotoasse a camisa em seu ritual.
O advogado levantou os olhos e examinou o desenho. Depois virou-se para Gregório, ainda demorando-se em escolher as palavras.
- Acho que você precisa, de uma pausa.
- Como é? – a resposta saiu tão prontamente que Gregório se surpreendeu consigo mesmo.
- Acho que precisa de uma pausa. Pra colocar a cabeça no lugar, respirar um pouco. – dizia, mas a Gregório parecia não prestar atenção.
- Uma pausa? – perguntou incrédulo, depois de alguns momentos de silêncio – Isso é sério?
- Gastar o dinheiro que lhe paguei. – respondeu com um sorriso leve e uma sobrancelha arqueada que fazia da sugestão uma pergunta.
- Não. – pausou.
O advogado olhava com a condescendência que se olha para uma criança. Como diabos ele esperava que Gregório aceitasse essa sugestão? Ainda que a dor parecesse ter diminuído, seu cliente ainda fincava as unhas no encosto, ainda suava e ainda ardia em febre.
- Não, de jeito nenhum. Demorei muito tempo pra me acostumar com a sua tara de sentir dor e agora você quer me dar tempo pra desacostumar? O cacete. Vamos marcar semana que vem.
- Olhe, eu entendo que queira acabar isso logo. Eu também quero. Imagino que tenha reparado enquanto eu trincava os dentes na sua maca. Mas não quero que seja desleixado por causa disso. – Gregório fez menção de interrompê-lo, mas seu cliente pausou antes que pudesse e ele reconsiderou.
– Sei o que você está pensando. Que é muito bom e que pode terminar esse trecho final em mais duas sessões mesmo que esteja com um braço quebrado e alcoolizado. Eu acredito em você. Mas preciso de algo que você não está em condições de dar: concentração. Você sabe tão bem quanto eu que está cansado. Então aqui está minha proposta: – gesticulou com as mãos – descanse pelo menos duas semanas. Quando sentir que está pronto, me ligue. Como também não tenho muito tempo, caso eu ache que está folgando demais vou te procurar. De acordo? – concluiu, estendendo sua mão como da primeira vez que se encontraram.
Gregório hesitou, sua boca abriu e fechou algumas vezes procurando o que dizer, mas ele sabia que seu cliente estava certo. Apertou sua mão e jurou que seria a ultima vez que entraria num acordo com aquele homem.

se eu te contar o que vejo, pode me dizer o que é verdade?:
No primeiro dia uma moça entrou no estúdio. Vestia roupas leves, sua saia e cabelo curtos realçavam seus quadrís. Gregório acompanhou enquanto ela se aproximava do balcão e olhava as fotografias nas paredes. Aguardou um cumprimento, mas desistiu.
- Boa tarde. – disse.
- Boa tarde. – respondeu, ainda imersa nos desenhos da parede. Virou-se para o balcão. – Eu quero tatuar meu pé. Estava pensando em estrelas.
Por um segundo, animou-se.
- Estrelas?
- Sim. Umas três.
Seu ânimou desinflou, ao perceber que, pela quantidade, não imaginavam mesmo tipo de estrelas. Aceitou o negócio e terminou em uma hora, um tanto triste.
Quando ela despediu-se, satisfeita, Gregório acompanhou sua caminhada até o final da rua acendendo um cigarro. Ao entrar de volta no estúdio o som do sino da porta lhe deu uma rápida vertigem.
As parades eram recobertas por vários trabalhos. Escorpiões, chamas e mulheres cobriam braços, flores e dragões populavam costas. Nesse mundo a pele se tornava cenário de batalhas, refúgio de fantasmas e demônios orientais, lar de criaturas fantásticas ou até memorial para coisas que alguém considerava importante.
Mas então Gregório percebeu que, depois de um tempo, não se lembrava mais das pessoas, não se deixava contagiar pela arte. Os pedidos se repetiam e o seu traço viciado já sabia como desenhar tudo aquilo de forma quase mecânica.
Fechou o estúdio mais cedo e não o abriu durante toda a semana.

A lua se escondia e o mundo noturno só se revelava para aqueles que esperavam que seus olhos se acostumassem. Gregório terminava um cigarro nos fundos de seu estúdio absorvendo o céu com os olhos. O cheiro da fumaça começou lhe incomodar e ele descartou seu cigarro.
Tirou o celular do bolso e desviou o olhar com a luz cegante do display.
Circulou pela agenda passando cegamente por diversos nomes – “Fênix César”, “Fênix Bianca”, “Fênix Rodrigo”, “Gaivotas Júlia”, os nomes eram de pouca importância e era difícil lembrar quem era quem – até encontrar o nome certo.
Discou. Aguardou alguns tons.
- Alô. – atendeu a voz baixa e familiar.
- Sou eu. – respirou fundo para limpar o cigarro da garganta – Está disponível amanhã?
O cliente demorou-se um pouco a pensar. Gregório observou a brasa do cigarro ganhar vida com a brisa e depois de um tempo apagou-a com a sola do sapato.
- Sim, vou estar. Duas horas é bom pra você? – perguntou.
- Ótimo.
Por vezes havia o som de carros passando, mas Gregório atentava ao céu noturno e pensava como havia ido parar naquela situação. Depois de mais de vinte anos de experiência, fazia tempo que não tinha a sensação de estar se preparando para algo.
- Gregório, procure descansar. Faça algo que gosta. Não estou te pagando bem a toa. Não quero que você esteja estressado quando estiver com uma agulha nas mãos. – disse, e Gregório refletiu se aquilo era um pedido ou conselho.
- Conselho aceito, Antoni. – respondeu. – Descanse você também.
- Boa noite.

Gregório jogou água no rosto e enxugou-se com a toalha.
Encarou o velho que via no espelho. Decidiu que tirar o bigode e a barba seria de alguma ajuda. Jogou os cigarros no lixo do banheiro e voltou ao quarto sentindo o vento sobre o rosto.
No criado mudo estava a chave cor de cobre.
Voltou-se para o corredor cheio de direção. A passos largos alcançou a porta do estúdio – seu antigo estúdio onde pintava, não o novo estúdio onde trabalhava.
Abriu a porta empurrando a pequena estante móvel com suas tintas, a máquina, o gerador e a garrafa que permanecia fechada e colocou-a perto da janela, abrindo espaço entre as telas. Decidiu pegar a maca no dia seguinte. Talvez a troca de ambiente o ajudasse também.
Gregório destrancou as janelas e puxou com alguma dificuldade. O vento levantou a poeira do quarto e balançou os panos. Impassível sobre o cavalete, uma das pinturas inacabadas pesava. Colocou a cadeira frente à janela e procurou o interruptor.
Depois de três cliques infrutíferos desistiu.
Estava cansado, era tarde e teria que acordar na manhã seguinte e se submeter a mais horas de sua tortura coletiva. Seu cliente iria sentir dor, apertar a maca e iria se ver livre dele.
Mas não iria se ver livre.
Abriu o uísque e serviu em um copo. Olhava pela janela e começava a se desprender do estúdio empoeirado. Tomou um gole e deixou seus olhos transitavam pelas estrelas e constelações - aries, touro, gêmeos, encontrou Castor e Pollux e pousou-se sobre o cinturão de Orion.
Parou por um segundo para considerar a ironia. Há muito tempo, com o pincel em mãos, talvez naquele mesmo lugar onde se sentava agora, a esperança de Gregório se cansou.
Sentou-se na cadeira. Ao longe a paisagem construída pelas luzes amareladas de janelas, postes e estradas era bonita, mas lhe faltava algo. Algo pervasivo, mas quase imperceptível ao olho nú. Algo que exigia crença e ar nos pulmões e que era mais fácil de enxergar quando o céu era certo. Quando se apagava as luzes e a noite era sem lua. Quando a humanidade parecia tola.
As luzes da cidade são apenas uma efígie das estrelas no céu.
Gregório entregou-se ao encosto da cadeira e ao sono.

e o que acontece com os garotos que se perdem em suas cabeças?:
Ainda estava em seu estúdio. Sabia.
Era tarde, mesmo sem relógio, e era escuro mesmo antes de abrir os olhos. A noite era silêncio e Gregório flutuava e se afogava. Não podia sentir os pés no chão, mas podia sentir seus pés procurando descalços um pouso. Rodopiava como em valsa e podia sentir o vento no rosto. Com passos confusos andava para o alto e para os lados sem saber onde pisaria até pisar.
Atrapalhou-se com o pé no mogno e quase tombou, mas para onde?
Os olhos estavam abertos agora e Gregório encontrou a janela de seu estúdio. Mas algo havia mudado, pensou enquanto as telas pendiam do teto, seus panos a volitar com o movimento das correntes do mar. E Gregório podia ver pela janela que o horizonte era infinito e a paisagem impossível enquanto afinava-se novamente em seu corpo.
Olhando para cima viu as estruturas de luz xadrez dos edifícios da cidade derretendo e se transformando. Estendeu a mão para tocá-las, mas elas se afastaram e voaram como elfos para longe. Deu um passo a frente, tomando cuidado para não tropeçar na moldura baixa da janela, mas perdeu seu chão ao pisar no céu e caiu, se segurando em um fio. Olhou para baixo, para a imensidão.
Então Gregório sentiu. Sentiu olhos e o fogo incandescente de Orion.
Viu-se criança, olhando para o cinturão e procurava Orion em volta, seus braços fortes e suas pernas ágeis, correndo para a caçada. Mas cansou-se e deixou que sua mente de criança lembrasse. Quando era pequeno encontrou o resto de Orion, mas não onde indicavam os livros que faziam com que sua cabeça virasse e virasse. Os livros inclementes que o faziam levantar do chão e rodar olhando o céu até ficar tonto e cair novamente.
Os três pontos eram os olhos. A estrela do centro era sua lanterna, brilhando com o fogo das estrelas. Não uma lanterna de pilhas, ou uma lamparina. Gregório sabia - decidiu. A estrela do meio era como o meio de nossos olhos, e lá ficava seu fogo.
Olhou Orion nos olhos, e sabia que ele olhava de volta. Ele já tinha visto aqueles olhos em outros sonhos. Perguntou-se o que ele via. O céu virou e virou novamente em volta de si mesmo e Gregório não caia mais do que afundava e flutuava enquanto se fitavam. O fogo cresceu e engoliu os dois enquanto a mão que segurava o fio puxava e Gregório se enrolava enquanto queimava suas mãos, suas costas, suas pernas, seu rosto e ele se desfazia em chama e linha. As estrelas sumiam uma a uma enquanto Orion e o homem encaravam-se como rivais, como velhos amigos, como pai e filho e pai e nem um nem outro tinha nada mais do que os olhos e o fogo que queimava e ardia nos sonhos.
Gregório soube que era pedra, e que o céu era mar e que seu destino era afundar-se nele e deixar que a corrente o levasse pela via láctea enquanto se entregou e os olhos se fecharam e restou só o fogo e a noite.

Acordou em brasa no chão do estúdio, o laranja da alvorada devassando as telas e os panos espalhados. Gregório sentiu cheiro de ferro e quando abriu os olhos viu o chão e sua camisa jogada na vertical. Levantou-se do chão e sentiu um fio enrolar-se em seu braço. A máquina pendia presa em seu braço. Suas costas ardiam e o chão era tinta preta e sangue.
Uma única tela permanecia em pé no estúdio – agora terminada e preenchida com a lógica cega das estrelas.
Gregório foi até o banheiro sentindo arder suas costas. Abriu a torneira e lavou o rosto com água fria. Virou-se de costas para o espelho e viu. As estrelas não preenchidas sobre a tinta preta quase brilhavam. Perguntas surgiram ininterruptas em sua mente, mas calou-as ao encarar a si mesmo no espelho e lembrar vagamente de seu sonho já meio esquecido.
Antoni chegaria em breve.

de estrelas:
Quando o sino da porta tocou Gregório não se deu ao trabalho de levantar os olhos da folha na qual rabiscava em cima do balcão. A placa, virada para dentro, dizia “Aberto”.
- Você parece cansado. – disse Antoni.
- Cale a boca. – respondeu Gregório cumprimentando-o com um aperto de mãos. Segurou com força por um segundo encarando-o nos olhos. – Você sabia que algo ia acontecer não? – perguntou, e Antoni não respondeu, mas Gregório sabia. Viu a resposta em seu rosto. - Suba. Vou te tatuar lá em cima hoje. – disse andando até a porta e passando o trinco.

O sol atingiu seu pico e voltou a se esconder, o dia dando lugar à noite e à meia-noite, mas independente das interjeições de dor de Antoni, Gregório continuou em transe e foco até que terminasse. O centro era único, um desenho grande, mas o costume fez com que fosse concluído rápido.
Abaixou o braço cansado e afastou-se anestesiado.
O desenho era complexo e emaranhado. Os traços se alternavam, hora formando curvas orgânicas, hora formas geométricas. Motivos se repetiam como letras de algum alfabeto desconhecido e acompanhavam a simetria ilusória do quadro. A obra seguia uma estranha hierarquia, com os elementos se agrupando em falso acaso, com cada parte se ligando à próxima por interseções quase imperceptíveis. Todas elas circulavam e convergiam para o centro, onde havia um símbolo que ele classificou como uma mistura entre uma flor de lótus e a cabeça de uma cobra.
Antoni ficou em silêncio durante alguns longos minutos enquanto Gregório limpava o material. Respirava fundo, mas não parecia mais tão pálido ou frágil e a tinta não parecia mais pesar e queimar - não mais que o normal, ao menos.
Gregório andou até a janela tirando as luvas e jogando-as no lixo. A noite ainda era sem lua.
Depois de fazer o curativo, levou Antoni até a porta.
- E agora? – perguntou Gregório. Sentia um pequeno vazio em algum lugar.
- Agora tenho um lugar importante para ir... – respondeu.
- E esse sacrifício é todo por esse lugar? – perguntou, mas não esperou resposta. – Deve ter algo muito importante pra você lá.
- Sim.
Os dois permaneceram em silêncio por um tempo. Antoni tateou os bolsos.
- O resto do pagamento. Não gaste tudo de uma vez. – disse, entregando um envelope amassado a Gregório. Alguns carros passavam pela rua, mas era tarde e a maior parte da cidade já dormia.
- É só isso? Você não vai me falar nada sobre o que aconteceu? – perguntou Gregório. Tinha perguntas e esperava que Antoni tivesse algumas respostas.
- O que aconteceu? – perguntou.
- Eu vi as estrelas nos meus sonhos e elas falaram comigo em seus olhos. E eu afundei e voei e elas me deram o fogo. Eu acordei no chão do meu estúdio com uma tela pintada e tinta nas costas e eu não faço idéia de como isso aconteceu. – respondeu.
- Não tenho nada pra te dizer que você já não saiba. - e Gregório sabia que era verdade.
O que quer que se seguisse, não seria mais o mesmo de antes e ainda podia ser sentido no ar o peso das perguntas não respondidas e enigmas não solucionados. Aquele cliente tinha sido diferente de todos. Não por afinidade ou pela arte, mas por outros motivos.
O silêncio se instalou novamente e os dois olharam para o céu aproveitando a brisa da noite e se demorando na despedida.
- Não dá pra ver isso do centro. – disse Antoni.
- Não mesmo. – respondeu Gregório.
Suas perguntas desapareceram e o céu era, num primeiro olhar, preto e impenetrável. Mas para o olho treinado e para o coração desperto, Gregório sabia, que quando observado com cuidado, na luz certa – não as luzes da cidade – o céu negro não era negro.
Era só meia-noite e azul, a cor secreta que só se revela pra quem acredita e sonha como sonharam Van Gogh e Saint-Exupéry. Sua cor preferida.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013