quinta-feira, 14 de novembro de 2013

[o sucateiro]

Escrito em 30 minutos para o Desafio 2 Minds.

A planície jazia em paz e silêncio. Já haviam passado os exércitos de guerreiros armados de espadas e machados, vestidos com armaduras de ferro, cotas de malha e capacetes .
Já era finda a guerra, há anos, mas o campo já havia se tornado infértil com o peso dos cavalos e o sangue. Sua poeira fina se elevava a cada brisa, como carregada pelos espíritos dos mortos.
Havia quem olhasse aquela cena, o ferro espalhado pelo solo, os cacos de lâminas antigas e as escamas e placas separadas de suas armaduras para dar lugar à lâminas que derrubaram grandes guerreiros, heróis, lendas – cada um apenas um soldado, cada um apenas mais uma contingência.
Não o sucateiro. Caminhava com ajuda sua bengala e sua mochila de couro desbotada pelo solo rijo, se protegendo do sol com um capuz. Estrepitando com cada passo, os restos de metal que carregava em sua bolsa. Os fantasmas eram seus amigos e a antiga guerra seu sustento.
Herdara sua casa - contava seu avô, com com suas mãos calejadas e uma cicatriz no lábio – de ancestrais nobres. Contava que um dia aquela terra havia sido regada por córregos, e que qualquer semente lançada ao solo florescia e dava frutos. Que imperava, até onde os olhos podiam ver, sua família, de seu castelo de mármore, suas roupas de seda e tudo em volta era vilarejo, com camponeses felizes.
Não mais. Não depois da guerra.
O sucateiro não vivera pra ver aquilo. Não haviam registros. E mesmo optando por acreditar, pouco daquilo lhe importava. O que importava era apenas seu filho e a comida que comeriam naquela estação.
Caminhava a planície com sua mochila de couro desbotado, seu capuz, tateando com sua bengala o solo seco. Tomou mais um gole comedido de água. Era dia de colheita.
Agachou-se próximo à ruína de uma casa e pegou uma folha de ferro torcido, erodido pelo vento e pelas tempestades de areia. Descascou um pouco da ferrugem com unhas gastas e a cabaça, que fora capacete, começou a se desfazer. Jogou o elmo para longe e continuou sua caminhada lenta.
Assobiava e caminhava, batucando seu cajado contra o chão para marcar o ritmo. Seria um inverno longo, e não podia se dar ao luxo de voltar para casa sem encontrar ao menos mais algumas peças. O sol a pino esquentava sua cabeça, e sua barriga roncava. Em casa, ele e seu filho já começavam a passar fome.
Sua bota atingiu algo duro.
Olhou para baixo, esperançoso, para encontrar apenas a fivela de um cinto, ainda presa a uma fina tira de couro gasto. Chutou-a com raiva e acabou rasgando a lateral de sua bota.
O sucateiro precisava de mais, e o sol já começava a se por. Sabia que o dia chegaria, em que o que os espólios esquecidos da batalha acabariam, que teria coletado tudo que era humanamente possível. Mas não queria que aquele dia fosse hoje.
Alcançou seu cantil para mais um gole de água e ele foi o último. O sucateiro, resignado, começou sua marcha tropêga de volta para casa. Teria que voltar pela teceira vez à planície no dia seguinte.
Voltando, encontrou uma duna baixa de areia branca e fina. Olhou para o horizonte e decidiu que viria uma tempestade, que provavelmente a carregaria para outro lugar. Começou a tatear a duna, afundando seu cajado na areia até que atingiu algo sólido.
Virou-o de ponta cabeça. O topo possuia uma protrusão no formato de um gancho, feita de ferro fundido, preso à madeira do corpo com pregos e tiras de couro de coiote. Afundou o gancho na areia, moveu a ponta um pouco encaixando o gancho sob o objeto e puxou.
Uma espada emergiu, e o sucateiro sorriu. A lâmina parecia em bom estado, e ainda possuia algum lume contra o sol da planície. O couro da empunhadura já havia se desgastado e desprendido há tempos. Olhou com mais cuidado viu o resquício ilegível do sinete de um ferreiro. Ferro de qualidade, usado por cavaleiros de alta patente.
O sucateiro fundia o metal de baixa qualidade das armaduras para fazer panelas e vender aos demais camponeses. Às vezes até martelos ou outros utensílios de metal, quando o ferro ainda estava integro o suficiente para aguentar trabalhos mais detalhados. Mas espadas eram mais difíceis de encontrar. Os soldados do rei, quando de passagem, pagavam dez peças de prata por cada lâmina de soldado, e até cem peças de ouro pela espada de um general.
Era seu ofício, dia após dia, colher o ferro que emergia daquela planície sangrenta e assombrada. Tirar seu sustento do infortúnio de milhares. Depois de todos os seus propósitos nefastos serem servidos, transformar aquele ferro sangrento em algo bom.
Mas mesmo que a maioria dos derrotados naquela batalha tivessem morrido antes que seu pai se deitasse com sua primeira mulher, o sucateiro ouvia, por vezes, o impacto entre espadas e o cavalgar de cavalos. Quando era noite, talvez até o grito de carga das tropas dianteiras.

Mas não naquela noite. Aquela noite dormiria tranquilo. Pôs-se a voltar para casa, com sua milésima lâmina.

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