terça-feira, 15 de novembro de 2011

[pássaros]

Quando pássaros são pássaros,
Me parece – fazem pouco.
Piam, voam, são somente.
Pássaros. Suficiente.

Mas por vezes, vezes loucas
Pássaros são deuses – poucas;
Quando cantam, me sereno.
Raro. Simples. Breve e pleno.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

[mais fundo]

Se você pudesse ter observado de uma distância, do lado de fora, na segurança de poder divergir em como a noite era bonita, ainda ouviria os gritos rasgando seu caminho para fora daquelas janelas. Ainda sentiria arranhar sua espinha uma fagulha de imaginação que faria com que corresse, não importa se em socorro ou para nunca mais retornar.
Se pudesse ter assistido do lado de dentro, em cadeira cativa, sentiria pena, medo, ânsias de vômito. O cheiro forte entraria por suas narinas, as cores seriam fortes demais e os gritos, agora, ricocheteariam pelas paredes e ecoariam pelos tambores de seus ouvidos. Tentaria decifrar a escrita rústica nas paredes no chão e no teto, procurar algo que juraria ter visto se mover dentro da chama das velas ou se concentrar no tremeluzir pálido das lâmpadas de fósforo, mas não conseguiria. Seus olhos gravitariam para o homem deitado à mesa e a mulher que o mazelava em pé.
Veria que, ao cheirar os dedos, as sobrancelhas de Deirdre se arqueavam em dúvida sobre seus olhos baços e perdidos enquanto tentava decidir se o odor férreo provinha do sangue ou da ferrugem de suas ferramentas. Veria que ela pouco se deixava afetar pelo sofrimento que se intensificava e circulava pelas linhas e signos entalhados como ar viciado.
Veria que, diversas vezes, o que sobrou de Rodes amarrado à mesa, esboçava palavras que não conseguiam sequer passar de seu peito arfante. Que suas pupilas embaçadas pelas lágrimas procuravam foco em qualquer lugar. Veria que, não importa a profundidade de seu transe, onde quer que estivesse transitando, a dor era evidente.

Se pudesse entrar na cabeça de Rodes e ter a sensação de que o conhecia, sentiria nojo. Um nojo tão profundo que, ao sair de sua mente, se sentiria imundo.  Saberia de todos os seus crimes hediondos, desumanos. As vidas que tirou e as vidas que não tirou, cujos donos e donas forçou a viver em eterna espera e perda, em eterno pesar. Sentiria nojo nas coisas que fez, nos lugares que tocou, entre pernas, entre rins, o suor com o cheiro característico da adrenalina. Veria seus olhos injetados, seu sorriso amarelo e tudo que fora antes.
Ao sair, talvez concordasse com Deirdre, talvez não. Talvez não reconhecesse o que sobrou de Rodes, se contorcendo, o ar atingindo seus intestinos expostos, os ácidos de seu próprio corpo corroendo tudo pelos seus vasos sanguíneos. Seu sangue em todos os lados e a dor que gritava e suava para expulsar sempre retornando, forçada pelo rito.
Talvez tivesse a certeza – e por um segundo teria – de que ele merecia tudo aquilo que passava. Talvez concordasse com Deirdre, talvez não.

Se pudesse ver no que pensava Deirdre veria lembranças. Veria lembranças felizes e saberia que eram todas venenosas, pois haviam reagido como em química com uma única lembrança com as cores de suas filhas, de aço e de sêmen. De suas filhas que tomavam seus nomes emprestados de flores.
Sentiria dor, sofrimento, compaixão e cada um destes traria uma profunda angústia, pois saberia do fundo do seu ser, que não poderia nem começar a compreender o que Deirdre sentia. Saberia que tudo que jamais sentiu não estava nem aos pés de uma fração daquilo e se sentiria impotente.
Ao sair, se sentiria impotente de novo, pois saberia que cada osso que estalava abafado pela carne mole, aquilo não fazia com que Deirdre se sentisse melhor. Apenas fazia com que Rodes se sentisse pior - talvez fosse exatamente aquilo que ela desejava.
Veria um rosto que não era o de Deirdre, mãos que também não pertenciam ao seu mundo, ao mundo de homem algum, e teria medo do lugar onde está. Saberia que aquela era uma interseção entre seu planeta e algum completamente alienígena. Deidre havia cruzado aquela linha havia muito tempo, e se tornado algo que só se sabia humano pelas memórias que mal conseguia distinguir.
Se sentiria impotente – e talvez um pouco aliviado – por não poder fazer nada naquele quadro.

Saberia que um monstro havia criado outro e que essa era uma espiral complicada, tão complicada quanto os entalhes nas paredes.
Saberia que, para Rodes, aquilo acabaria no momento em que seu coração parasse de bater. Que ele ao menos teria essa escapatória no final.
Que Deirdre sairia daquela sala com um corpo numa sacola – talvez em várias – e que tudo aquilo que girava e girava dentro de sua cabeça continuaria em uma ciranda infinita.
Teria a certeza de que uma pessoa boa poderia se tornar um monstro ainda mais sem piedade do que um louco, pois tinha consciência do que fazia. Saberia que, tirando de alguém tudo aquilo ao que dá valor, uma besta perfeita está criada.
Mas não teria a certeza se loucura era, de fato, o caso de Rodes, e sentiria nojo mais uma vez. Decidiria não pensar mais naquilo.

Não saberia o que sentir. E depois de um momento, de uma volta completa pela espiral, se recolheria. Não poderia ser diferente.
Simplesmente veria sua compaixão se diluir em fumaça – ou não, e se sentiria um hipócrita. Seu impulso à empatia não seria o suficiente para superar a agonia. Simplesmente agradeceria que o quadro não aconteceu com você.
Pois aquele quadro não pertence no mundo de onde você vem. Ele faz parte de um abismo escuro, profundo, onde só habitam aqueles que escolheram nele habitar ou aqueles que nele foram empurrados. Um abismo onde tudo que você pode ver é a escuridão, e você viveria com prazer sem o conhecimento de onde é o fundo, e o medo não haver um.

Saberia que tem uma escolha, mas não se seria forte o suficiente para fazê-la. Teria medo e dúvida e se perguntaria, para sempre, se realmente quer ver o que há um pouco mais abaixo. Um pouco mais.

sábado, 16 de julho de 2011

[o verbo]

Antes de qualquer coisa, olá a todos.
Sou o autor desse blog.
O prazer é todo meu.

Parece bobeira. Esse blog já foi muitas coisas diferentes. Já foi uma válvula de escape, já foi um canto onde eu simplesmente soltava minhas divagações, já foi um registro, enfim: muitas coisas.
Todas eu deletei.

Tenho investido com um pouco mais de afinco na minha veia de escritor. Me convenceram que eu levo um jeitinho, mesmo não fazendo letras, advocacia ou qualquer faculdade que exija muito da minha habilidade de - ipsis litteris - escrever.
Ele significa muito pra mim, e sempre cuidei dele com bastante carinho. Como aquele caderno onde você guarda vários rascunhos, com matéria de estudo espalhada no meio e várias ofensas à arte ilustrada nas margens.

Antigamente eu não divulgava. Nem aparecia no Google se por acaso você buscasse algo próximo.
Hoje em dia eu gosto de passar ele quando chega num tal ponto da conversa, mas bem... eu ainda não tenho o habito de cantar de galo e falar pra todo mundo "Oi, eu escrevo! Quer ver o meu blog?"
Meu nariz empinado já me confere toda a fama de convencido que eu preciso. Tenho medo de aumentá-la. E um pouco de timidez, veja você.

Mas tenho vencido isso aos poucos. Já posto discretamente no Facebook quando atualizo, em breve no Google+, essas coisas.
Estou tentando vencer meu preconceito com auto-promoção e começar a espalhá-lo por aí, mas quero fazer isso de um jeito que seja confortável pra mim... ando pensando.

Mas não é sobre isso que eu queria falar.
Digo, também, mas não só isso.

Sei que é chato ler textos compridos na tela. Eu tenho bastante dificuldade, mas eu sempre tento fazer os meus contos recompensadores o suficiente pra se gastar um tempinho.
Então queria agradecer às pessoas que acompanham em silêncio e deixar claro que os comentários são importantes pra mim. Gosto de críticas inclusive.

Aos que comentam, obrigado. Ganho revisões de graça de vez em quando (hohoho), os elogios me envaidecem o suficiente pra ter vontade de postar e as críticas eu sempre levo em consideração.

Queria agradecer especialmente à Jasmin Sanchez, que sempre me botou a maior pilha; ao Bernardo Stamato, que também é escritor (os blogues dele estão na minha barra lateral - ali ó); e à Bruna Saddy, que sempre elogia meus contos muito mais do que eu mereço, mas eu sei que faz parte do ofício de namorada.

Passem pra seus amigos que gostam de ler também. Me faria muito feliz.

Muito obrigado :) o éter agradece.

Daniel Ximenes

segunda-feira, 6 de junho de 2011

[ciência]

inquérito:
- O que eu tenho na minha mão? – segurou-a na frente do rosto, um pequeno punho.

tentame:
- Uma bola de gude!
- Nem perto. – um meio sorriso. Fitou o amigo com os olhos brilhantes de expectativa.
- Um boneco! – brincava inocente, esquecia-se de acertar.
- Também não.
- Hm... – abaixou a cabeça, um bico, olhando o chão - Quantas chances eu tenho?
- Quantas você quiser! – sorriu apertando os olhos.

ofensa:
- Um carrinho?
- Não. – quase bocejou.
- É um brinquedo? – perguntou sem malícia.
- Não! – aborreceu-se. – Não! Por favor, não! – brandia as mãos sem abrir a que segredava a resposta. – Não chame mais de brinquedo. – olhou para a mão.
- Tá bom. Desculpa... – embaraçou-se.

dicas:
- É vivo?
- Sim
- É uma flor!
- Não.
- Um besouro nojento!
- Não.
- É de que cor?
- Só perguntas de sim e não. Senão, acaba a graça.
- Está vivo agora?
- Sim.
Era complicado pensar em algo que pudesse estar tão tranquilamente vivo em um espaço tão pequeno.

lógica:
- Vamos, de novo! – sorriu.
Olhou em volta, procurando inspiração.
Tentou procurar por objetos faltantes. Não se deu por nenhum, mas ficou em dúvida, pois já fazia algum tempo. Porém, talvez houvesse outro do que ele segurava em algum lugar em volta. Fixou os olhos.
- Areia?
- Não.
- Uma pedra?
- Não. Menos sólido.

generalismo:
- Ar. – orgulhou-se da resposta e estufou o peito cheio de propriedade.
- Também, mas não é disso que eu estou falando.
Soprou, murchando. Olhava sem foco, pensando. Levantou um dedo.
- Espaço.
- Sim, mas também não é isso. Pare de chutar coisas genéricas.

superação:
Coçou a barba por fazer.
- Ao menos existe?
- Sim, é claro.
- E eu posso tocá-la?
- Você pode tocar em algo?
- Claro que eu posso. Estou tocando um monte de coisas nesse exato momento.
- Há quem diga o contrário. – a satisfação transpareceu nos seus olhos.
- Não importa. É físico?
- O quê não é?
- É físico ou não, droga? Estou perdendo a paciência.
- Então está perdendo o jogo.
- Caralho... – franziu a testa.

presunção:
- Vou assumir que se você pode segurá-la eu também posso.
- Você está errado.
- Por que, diabos?
- Você não sabe o que é.

empirismo:
- É um sentimento?
- Um pouco. – sorriu satisfeito.
- Felicidade?
- Não, mas pode trazer.
- Amor?
- Não. – soltou uma risada breve. – Você consegue segurar isso?
- Droga!
- Isso também não...

astúcia:
- Dedos. – a palavra escorreu com ironia e ele levantou uma sobrancelha. Batucava a mesa com os dedos.
- Isso é parte da minha mão, não dentro dela. – respondeu. – Pare de tentar trapacear.

impaciência:
- Meu tempo perdido.
- Quem escolhe perder o tempo é você.

cansaço:
- Desisto.
- Então você perdeu. – não abriu a mão, o rosto a mais genuína tristeza.
- O que é?
- O quê?
- O que você tem na sua mão.
- Eu pensei que você não queria mais brincar.
Houve uma pausa. Revoltou-se. Suas sobrancelhas brancas franziram-se e sua boca abriu esbravejante.
- Mas o que tem na sua mão!?
- Não importa.
Respirou fundo. Seus pulmões não eram mais os mesmos. Segurou os cabelos brancos
- Mas eu quero saber o que você tinha na mão!
- Por quê?

desconhecido:
- Porque estou curioso!
- Então tente de novo!
Fez-se silêncio e puderam ouvir o barulho dos pássaros.
- É impossível. Eu já tentei tudo. Nada faz sentido. Você me dá respostas contraditórias!
- Nem um pouco contraditórias. Você estava perto quando começou.
- Então me explique.
- E se eu te disser, o que acontece?
- Eu vou ficar satisfeito.
- Por quanto tempo?
Parou.
- Por que começamos a brincar?
Mais silêncio. Suas olheiras o perturbavam.
- Queríamos nos divertir.
- E se eu te contar? O que acontece?
Coçou os olhos cansados. Olhou seu velho companheiro.
- A brincadeira acaba.

inquérito:
- E se você acertar?
Naquele momento teve súbita certeza da resposta - e com a mesma certeza, não respondeu.

resposta:
Ergueu na frente do rosto do amigo sua pequena mão fechada novamente. As duas crianças continuaram a brincar.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

[para]

Para ele se irritar no trabalho precisa de muito, mas hoje foi demais, irrompe da porta de casa e se depara com mais uma cena que cansa, mal respira, não dá conta da pressão e cospe palavra incauta atravessada no peito daqu-

Ela, que se preocupa e que quer o bem do seu marido não merecia ter escutado tal palavra torta, mal disposta chora a mágoa na frente d-

A filha abre a porta e não entende, cresce pra não entender ainda mais porque tudo se separa, tem medo de sentir mais que uma fisgada de paixão porque a lágrima na face da mãe não lhe larga o pensamento, e sem querer, querendo, desdenha o sentimento d-

Ele, que é jovem, frustrado, só tem o que não faz questão, trabalha pra viver, vive pouco, começa a crer que só vale o que tem no bolso, a cabeça é névoa e faz tempo que o olho não vê colorido além do verde da nota, deixa tudo pra trás e não liga pr-

O cara sente inveja, "o colega tem tudo que quer!": dinheiro, mulher, vive bem, toma café no lugar caro todos os dias, sorriso estampado na cara, amarelo de cigarro - sente raiva, passa pra trás, joga sujo, tá arriscando tudo pra sentar naquela cadeira, tudo que queria era estar no lugar d-

Ele chega todos os dias em casa e lembra que todo mundo é igual, como no mundo tem gente louca demais, espaço de menos, gente tentando acabar com a vida dos outros até no trabalho, que depois que a mãe morreu é tudo o que ele tem, já que o coração começa a virar pedra, ou é isso que ele decidiu depois de tentar sentir de novo o que sentia com-

Ela continua correndo, já faz tempo, mas ainda sente a falta daquilo que tem medo, ainda que não saiba, começa a pensar que nada vale a pena que no mundo tem gente louca demais, espaço de menos, gente se separando e se machucando, escreve um bilhete perguntando se loucura é ir embora ou continuar aqui, ter um filho e deixar ele sem esperança, pula do sexto andar ainda lembrando da lágrima no rosto d-

Ela não tem perspectiva, ele já não é mais o mesmo, ela está ficando velha a cada dia que passa uma ruga nova, seu rosto já é um mapa daquilo que ela viveu demais pensando nos filhos, foi cansativo, mas valeu a pena, mas no mundo tem gente louca demais, espaço de menos, gente querendo o mal dos outros, e ela se preocupa a cada dia que passa com o bem estar dos filhos e a felicidade d-

Ele é orgulhoso, não abre os olhos pra ver o que aconteceu de verdade, entender que as palavras dele tem mais efeito do que ele jamais sonhou ter, mas ele não enxerga e só queria ser uma pessoa digna de respeito, importante pra alguém, mas o chefe está pegando no pé dele, aquele projeto não vai sair tão cedo, ele sempre depende dos outros e repara que o mundo tem gente louca demais, espaço de menos, gente que não move um bedelho pra mudar a situação das coisas, pra fazer o trabalho com cuidado, atenção, carinho, e esse é o serviço dele em tudo enquanto pai, só quer o bem dos filhos e tem medo, sabe que vai continuar sendo difícil, mas reza pra não ter criado galinhas e sim águias, e reza também pra um dia perceberem que tudo que precisam é se perguntar por que diabos a gente nunca
para.

terça-feira, 12 de abril de 2011

[missa a akasha - 4. paranoia]

4. paranoia:

O peso da dependência é impróprio
apropria-se do pensamento e
prevalece apenas o
Ópio.
O poder ímpar desprende-se da
persona. Essa paródia persegue
ininterrupta , até que impere pura a
superstição.

terça-feira, 22 de março de 2011

quinta-feira, 3 de março de 2011

[missa a akasha - 3. megalomania]

3. megalomania:

O delírio desperta, indômito
induz a alarde e delega
a droga da deidade, desesperadoramente
doce.
Adormecida, a danação é
evidente, mas o devaneio é divino e
denso. A audácia, de fato precede
o dom.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

[missa a akasha - 2. hesitação]

2. hesitação:

A confiança cala-se, encolhe
E colide com a calúnia. Incauto
o conto encontra a causa, em si
incoerente.
Incompleta, a certeza inibe-se e
cessa. A imprecisão cresce
inócua, incisa o cosmo e colapsa
inexplicável.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

[missa a akasha - 1. disparate]

1. disparate:

A vontade inflama, faz-se visível
e influi, fornecendo a força e a
febre, constrói a farsa e
aflora.
Flutua, infante à forma
perfeita. Performance à parte,
a farsa pérfida fala, e por fim
manifesta-se.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

[missa a akasha - 0. fenda]

0. fenda - cântico de abertura

O pensamento nasce, escapa como fumaça
de incenso, ascende suave e
dilui-se, sabendo-se só e
insensato.
Suspenso, desabrocha como um
Hibisco. A idéia desfaz-se em
pétalas, é tragada em pó e
palavra.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

[esboço]

Me enrolo na prosa,
O coração se mexe, mas não completa o silêncio
A cabeça tenta, mas não basta
A noite é quente, o tempo se arrasta
Mas minha cama já não me acalenta
O sussurro do sono não me sustenta
Então o quê?

Inquieto me viro e me torço,
O texto me chama
Tenho que escrever antes de ir pra cama
Soltar esse verbo, sangrar esse esboço
A ânsia perdura e não perco o fio do sentimento
O olho me coça e eu perco minha linha de pensamento

O poema cresce, insosso, insensato
Um nó no cadarço do sapato
Me tira do sério, mas fica o ranço
O tempo passa, já não descanso
Novamente a mente me prega peça
O poema cessa

sábado, 8 de janeiro de 2011

[shiva para melissa]

Colocou um pé no solo rachado, depois o outro. Ao deixar a sombra confortável da van o sol parecia ignorar a tudo e queimar a pele diretamente. O vento, seco, também não ajudava a apaziguar o calor, vindo e parando como um cardume de lâminas de sal. Ainda, Melissa seguia resoluta, incorruptível, obstinada.

Olhou o povoado com um preconceito que jamais cultivara, amaldiçoando cada casa e cada inocente que cruzava sua caminhada. Marchava rangendo os dentes, com os olhos de uma áspide. Não se encaixava ali, assim como muitos que passeavam ostentando suas batas brancas e promessas de iluminação.

Lucas despedia-se silenciosamente da cidade. Passou por um vendedor de tâmaras. A água subiu-lhe a boca, depois deixou-a. Continuou a deslizar rumo ao acampamento sentindo-se feliz com sua recusa natural. O sutra agora vivia e falava por ele naquele plano, e não poderia ser diferente.

Com passos leves, deixou a fronteira leste da cidade com a consciência limpa, rumando para o aglomerado de tendas. Saudou os passantes como irmãos, conhecidos e desconhecidos, meneando a cabeça e sorrindo. Caminhou para sua barraca, para meditar uma ultima vez antes de seu cisma.

Seu transe foi interrompido pelo mais profundo silêncio. Era hora. Levantou e dirigiu-se à escadaria do templo. “Não deve ter dúvidas ou me procurar para saná-las a partir de hoje” ressoava a voz de Janu em sua cabeça. Fazia parte do ritual, como tradição e teste de vontade.

Melissa o avistou. Não soube explicar o motivo, em meio a tantas pessoas trajando as mesmas roupas e com as mesmas cabeças carecas, mas sabia que era ele apenas pelo caminhar, por sua aura familiar. Sabia e esperava que o mesmo motivo os salvasse enquanto amantes.

Lucas abaixou-se e tirou as sandálias. Melissa correu.

- Lucas! – arfava subindo os degraus, mochila às costas.

Ele se virou para a única voz com o poder de abalar-lhe a certeza. Respirou fundo e recebeu-a decidido, mas não tão decidido quanto estivera segundos atrás.

Se encararam por um longo momento, e este momento determinou o desfecho daquele encontro, ainda que ambos não soubessem.

Entregou a ela suas sandálias com condescendência nos olhos. Ela relutou. Olhou-o como se fosse a ultima vez. Sabia que voltaria a vê-lo, mas ele não seria mais o mesmo. Estendeu a mão trêmula e tentou tocar-lhe a face. Ele pensou em negá-la aquele deleite, mas cedeu. O relógio prata pendia, grande demais para o pulso delicado dela – outra das posses que estavam no lugar errado. Ela já se acostumara com o peso meses atrás.

- Não faça tudo mais difícil, Mel. – desviou o olhar e abaixou a mão que segurava as sandálias.

- Não acredito. – indignou-se – Simplesmente me recuso a acreditar nisso. Sete anos Lucas. Sete anos juntos para isso... – um soluço tomou-lhe a garganta necessária para continuar e as lágrimas negou, invisíveis como Sarasvati.

Passou a mão mais uma vez por sua face e cabeça lisas, mas ele recuou, segurando as sandálias. Sentiu vontade de dar-lhe um tapa, um beijo, qualquer coisa emocionalmente explosiva, que o sacudisse de seu transe obsessivo.

Lucas pôde sentir a vibração e desviou o olhar. Se preocupou duplamente. Fechou os olhos, e repetiu para si mesmo palavras que só ele compreendia, fazendo o sentimento se anestesiar e adormecer. Era fácil de desfazer de suas posses, seu carro, suas roupas de marca, mas horas e horas de meditação não conseguiram apagar o que sentia por Melissa.

- Então é isso? Acabou? – Melissa quebrou o silêncio saído de seu próprio devaneio. A entropia das diversas formas de amor já seria o suficiente para quebrar a fibra de qualquer Buda, mas ela retardava o momento pelo mesmo motivo que caminhava para ele.

- Você sabe que não. Sabe que preciso ir.

- Não comece com sua filosofia. Você sabe do que estou falando. – Lucas observava com olhos distantes. Melissa nadava no momento com todos os sentidos transcendentais que não possuía.

- Isso me dói mais do que você imagina Melissa, mas é necessário. Eu quero seguir em frente, me desprender, e espero que você entenda isso um dia. – cada palavra um núcleo de sentido e esperança.

- Não vou entender. – cada sílaba uma seta de tristeza e raiva.

- Um dia vai. – condescendente – Tenho certeza. Mas não posso atingir minha elevação se algo ainda me prender aqui, e o que eu sinto por você é sem dúvida meu grilhão mais poderoso.

- Pare de racionalizar! – explodiu por um segundo, mas logo abaixou o tom – Não tente explicar o que não tem explicação, Lucas. Você sabe bem o que isso significa pra mim. Nunca pensei que você fosse me... – a pedra subiu-lhe à garganta arranhando, mas não soube como explicar de outra forma – deixar.

Sete anos foram tempo demais para ambos. Sete anos de companheirismo, felicidade, emoções e momentos, cada um único como cada estrela no céu.

Aquele momento era, também, uma singularidade.

Poderia ser uma singularidade de várias formas. Melissa ainda sustentou por um segundo uma esperança vã, e visualizou a cena, os olhos inconscientemente fitando seu sexto chakra: Lucas colocava as sandálias ao chão, sua face se contorcia em uma expressão indescritível de loucura, raiva, decepção e finalmente alivio, enquanto seu coração dominava a tudo e expulsava qualquer mantra bastardo que ousasse ressoar sequer uma sílaba. Se abraçariam, sem se beijar, perdendo a noção de tudo na escadaria do templo, absorvidos um no outro. Trocariam mimos e promessas de união e dormiriam apenas metade da noite nos bancos rasgados da van alugada. Voltariam para casa passando cada hora do vôo relembrando histórias e momentos, depois dormiriam de mãos dadas e só acordariam para o pouso.

Foi interrompida pelo som de um sino.

Lucas olhava para baixo, perdido em pensamentos.

- É hora. Tenho que ir. – sua frieza era uma navalha. Não poderia fraquejar agora. Pensara, como ela, em um quadro diferente, próximo daquele, mas em sua mente ele não se traduzia como esperança. Cada imagem era o elo de uma corrente que o prendia naquela escada na tirania da realidade. Fraquejou vezes sem conta, mas preferiu não dar chance à sua fraqueza. Decidira em sua iluminação que certas coisas só são alcançadas em momentos de breve resolução, e não com anos de alfa praticado.

Virou-se e andou pesaroso até uma das colunas que sustentavam o topo do templo, livrando-se do samsara de sentimentos. Pousou suas sandálias ao pé de uma das pilastras e se dirigiu à porta, franzindo o cenho.

Melissa soluçou e derramou uma lágrima, mas não tarde demais. Virou-se para a congregação sem enxergar as batas e atos de abnegação. Ignorou o sol, o solo, o cheiro de incenso, o som distante do povoado e tropeçou pelos degraus, desconhecendo seu corpo e para onde ele a levaria.

Cada memória e cada sonho trincava e se despedaçava como vidro. O desespero agarrou-lhe o peito a meio caminho da saída da congregação. Fez curvas cegas pelos becos, tentando se afastar de tudo e caiu de joelhos, suas lágrimas descendo como dois rios. Arfou por ar, socou o chão erodido, segurou os cabelos com força. Pode ouvir, no fundo de sua cabeça, a lâmina da guilhotina descendo lenta e certamente. Resistia àquele momento com a garra de um animal selvagem, mas não conseguiu contê-lo.

Então desistiu.

Seguiu para a planície aberta, como um afogado busca sair da água que o afoga. Encostou a mão em uma acácia para recuperar o fôlego, sua vista embaçada pelas lágrimas. A foice cortou o que quer que fosse sua vitima. O sol começava a se avermelhar.

Lucas passou pelos arcos e avistou os pequenos casebres dos gurus, montados junto aos muros com juta, madeira e adobe. Recordou-se que ele, também, residiria em uma destas durante o tempo que sua purificação e ascensão demorasse purificando seu corpo e buscando orientação em planos superiores a este. Tocou a fronte com o indicador e se concentrou. Pairou pela grama, obra do pequeno córrego que cruzava o santuário e dirigiu-se até a tenda destinada a ele. Janu o aguardava na porta.

- Está pronto então, Lucas? – disse, relutante em abrir-lhe o caminho.

- Mais do que jamais estarei, Mestre Janu.

Janu olhou com pesar seu discípulo livrar-se de sua bata e deixar apenas o pano que lhe tapava as coxas. Enxergou além de sua resolução naquele momento, mas aquele aprendiz já não era mais sua responsabilidade. Pelo menos por enquanto.

Lucas abaixou a cabeça e olhou para o interior da tenda do suor e viu o breu que guardava todos os mistérios e promessas de iluminação, dignos de uma divindade exaltada e tudo que aquele estado lhe reservava.

Melissa enxugou os olhos erguendo a cabeça na direção do horizonte e viu todo o resto.