quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

[missa a akasha - 0. fenda]

0. fenda - cântico de abertura

O pensamento nasce, escapa como fumaça
de incenso, ascende suave e
dilui-se, sabendo-se só e
insensato.
Suspenso, desabrocha como um
Hibisco. A idéia desfaz-se em
pétalas, é tragada em pó e
palavra.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

[esboço]

Me enrolo na prosa,
O coração se mexe, mas não completa o silêncio
A cabeça tenta, mas não basta
A noite é quente, o tempo se arrasta
Mas minha cama já não me acalenta
O sussurro do sono não me sustenta
Então o quê?

Inquieto me viro e me torço,
O texto me chama
Tenho que escrever antes de ir pra cama
Soltar esse verbo, sangrar esse esboço
A ânsia perdura e não perco o fio do sentimento
O olho me coça e eu perco minha linha de pensamento

O poema cresce, insosso, insensato
Um nó no cadarço do sapato
Me tira do sério, mas fica o ranço
O tempo passa, já não descanso
Novamente a mente me prega peça
O poema cessa

sábado, 8 de janeiro de 2011

[shiva para melissa]

Colocou um pé no solo rachado, depois o outro. Ao deixar a sombra confortável da van o sol parecia ignorar a tudo e queimar a pele diretamente. O vento, seco, também não ajudava a apaziguar o calor, vindo e parando como um cardume de lâminas de sal. Ainda, Melissa seguia resoluta, incorruptível, obstinada.

Olhou o povoado com um preconceito que jamais cultivara, amaldiçoando cada casa e cada inocente que cruzava sua caminhada. Marchava rangendo os dentes, com os olhos de uma áspide. Não se encaixava ali, assim como muitos que passeavam ostentando suas batas brancas e promessas de iluminação.

Lucas despedia-se silenciosamente da cidade. Passou por um vendedor de tâmaras. A água subiu-lhe a boca, depois deixou-a. Continuou a deslizar rumo ao acampamento sentindo-se feliz com sua recusa natural. O sutra agora vivia e falava por ele naquele plano, e não poderia ser diferente.

Com passos leves, deixou a fronteira leste da cidade com a consciência limpa, rumando para o aglomerado de tendas. Saudou os passantes como irmãos, conhecidos e desconhecidos, meneando a cabeça e sorrindo. Caminhou para sua barraca, para meditar uma ultima vez antes de seu cisma.

Seu transe foi interrompido pelo mais profundo silêncio. Era hora. Levantou e dirigiu-se à escadaria do templo. “Não deve ter dúvidas ou me procurar para saná-las a partir de hoje” ressoava a voz de Janu em sua cabeça. Fazia parte do ritual, como tradição e teste de vontade.

Melissa o avistou. Não soube explicar o motivo, em meio a tantas pessoas trajando as mesmas roupas e com as mesmas cabeças carecas, mas sabia que era ele apenas pelo caminhar, por sua aura familiar. Sabia e esperava que o mesmo motivo os salvasse enquanto amantes.

Lucas abaixou-se e tirou as sandálias. Melissa correu.

- Lucas! – arfava subindo os degraus, mochila às costas.

Ele se virou para a única voz com o poder de abalar-lhe a certeza. Respirou fundo e recebeu-a decidido, mas não tão decidido quanto estivera segundos atrás.

Se encararam por um longo momento, e este momento determinou o desfecho daquele encontro, ainda que ambos não soubessem.

Entregou a ela suas sandálias com condescendência nos olhos. Ela relutou. Olhou-o como se fosse a ultima vez. Sabia que voltaria a vê-lo, mas ele não seria mais o mesmo. Estendeu a mão trêmula e tentou tocar-lhe a face. Ele pensou em negá-la aquele deleite, mas cedeu. O relógio prata pendia, grande demais para o pulso delicado dela – outra das posses que estavam no lugar errado. Ela já se acostumara com o peso meses atrás.

- Não faça tudo mais difícil, Mel. – desviou o olhar e abaixou a mão que segurava as sandálias.

- Não acredito. – indignou-se – Simplesmente me recuso a acreditar nisso. Sete anos Lucas. Sete anos juntos para isso... – um soluço tomou-lhe a garganta necessária para continuar e as lágrimas negou, invisíveis como Sarasvati.

Passou a mão mais uma vez por sua face e cabeça lisas, mas ele recuou, segurando as sandálias. Sentiu vontade de dar-lhe um tapa, um beijo, qualquer coisa emocionalmente explosiva, que o sacudisse de seu transe obsessivo.

Lucas pôde sentir a vibração e desviou o olhar. Se preocupou duplamente. Fechou os olhos, e repetiu para si mesmo palavras que só ele compreendia, fazendo o sentimento se anestesiar e adormecer. Era fácil de desfazer de suas posses, seu carro, suas roupas de marca, mas horas e horas de meditação não conseguiram apagar o que sentia por Melissa.

- Então é isso? Acabou? – Melissa quebrou o silêncio saído de seu próprio devaneio. A entropia das diversas formas de amor já seria o suficiente para quebrar a fibra de qualquer Buda, mas ela retardava o momento pelo mesmo motivo que caminhava para ele.

- Você sabe que não. Sabe que preciso ir.

- Não comece com sua filosofia. Você sabe do que estou falando. – Lucas observava com olhos distantes. Melissa nadava no momento com todos os sentidos transcendentais que não possuía.

- Isso me dói mais do que você imagina Melissa, mas é necessário. Eu quero seguir em frente, me desprender, e espero que você entenda isso um dia. – cada palavra um núcleo de sentido e esperança.

- Não vou entender. – cada sílaba uma seta de tristeza e raiva.

- Um dia vai. – condescendente – Tenho certeza. Mas não posso atingir minha elevação se algo ainda me prender aqui, e o que eu sinto por você é sem dúvida meu grilhão mais poderoso.

- Pare de racionalizar! – explodiu por um segundo, mas logo abaixou o tom – Não tente explicar o que não tem explicação, Lucas. Você sabe bem o que isso significa pra mim. Nunca pensei que você fosse me... – a pedra subiu-lhe à garganta arranhando, mas não soube como explicar de outra forma – deixar.

Sete anos foram tempo demais para ambos. Sete anos de companheirismo, felicidade, emoções e momentos, cada um único como cada estrela no céu.

Aquele momento era, também, uma singularidade.

Poderia ser uma singularidade de várias formas. Melissa ainda sustentou por um segundo uma esperança vã, e visualizou a cena, os olhos inconscientemente fitando seu sexto chakra: Lucas colocava as sandálias ao chão, sua face se contorcia em uma expressão indescritível de loucura, raiva, decepção e finalmente alivio, enquanto seu coração dominava a tudo e expulsava qualquer mantra bastardo que ousasse ressoar sequer uma sílaba. Se abraçariam, sem se beijar, perdendo a noção de tudo na escadaria do templo, absorvidos um no outro. Trocariam mimos e promessas de união e dormiriam apenas metade da noite nos bancos rasgados da van alugada. Voltariam para casa passando cada hora do vôo relembrando histórias e momentos, depois dormiriam de mãos dadas e só acordariam para o pouso.

Foi interrompida pelo som de um sino.

Lucas olhava para baixo, perdido em pensamentos.

- É hora. Tenho que ir. – sua frieza era uma navalha. Não poderia fraquejar agora. Pensara, como ela, em um quadro diferente, próximo daquele, mas em sua mente ele não se traduzia como esperança. Cada imagem era o elo de uma corrente que o prendia naquela escada na tirania da realidade. Fraquejou vezes sem conta, mas preferiu não dar chance à sua fraqueza. Decidira em sua iluminação que certas coisas só são alcançadas em momentos de breve resolução, e não com anos de alfa praticado.

Virou-se e andou pesaroso até uma das colunas que sustentavam o topo do templo, livrando-se do samsara de sentimentos. Pousou suas sandálias ao pé de uma das pilastras e se dirigiu à porta, franzindo o cenho.

Melissa soluçou e derramou uma lágrima, mas não tarde demais. Virou-se para a congregação sem enxergar as batas e atos de abnegação. Ignorou o sol, o solo, o cheiro de incenso, o som distante do povoado e tropeçou pelos degraus, desconhecendo seu corpo e para onde ele a levaria.

Cada memória e cada sonho trincava e se despedaçava como vidro. O desespero agarrou-lhe o peito a meio caminho da saída da congregação. Fez curvas cegas pelos becos, tentando se afastar de tudo e caiu de joelhos, suas lágrimas descendo como dois rios. Arfou por ar, socou o chão erodido, segurou os cabelos com força. Pode ouvir, no fundo de sua cabeça, a lâmina da guilhotina descendo lenta e certamente. Resistia àquele momento com a garra de um animal selvagem, mas não conseguiu contê-lo.

Então desistiu.

Seguiu para a planície aberta, como um afogado busca sair da água que o afoga. Encostou a mão em uma acácia para recuperar o fôlego, sua vista embaçada pelas lágrimas. A foice cortou o que quer que fosse sua vitima. O sol começava a se avermelhar.

Lucas passou pelos arcos e avistou os pequenos casebres dos gurus, montados junto aos muros com juta, madeira e adobe. Recordou-se que ele, também, residiria em uma destas durante o tempo que sua purificação e ascensão demorasse purificando seu corpo e buscando orientação em planos superiores a este. Tocou a fronte com o indicador e se concentrou. Pairou pela grama, obra do pequeno córrego que cruzava o santuário e dirigiu-se até a tenda destinada a ele. Janu o aguardava na porta.

- Está pronto então, Lucas? – disse, relutante em abrir-lhe o caminho.

- Mais do que jamais estarei, Mestre Janu.

Janu olhou com pesar seu discípulo livrar-se de sua bata e deixar apenas o pano que lhe tapava as coxas. Enxergou além de sua resolução naquele momento, mas aquele aprendiz já não era mais sua responsabilidade. Pelo menos por enquanto.

Lucas abaixou a cabeça e olhou para o interior da tenda do suor e viu o breu que guardava todos os mistérios e promessas de iluminação, dignos de uma divindade exaltada e tudo que aquele estado lhe reservava.

Melissa enxugou os olhos erguendo a cabeça na direção do horizonte e viu todo o resto.