Existe uma crença falha que é largamente
difundida por puro descuido em toda academia de magia em que tive o prazer (e
em algumas o desprazer) de colocar os pés.
Adereço-me neste momento a
você, leitor, confidenciando que nunca me esforcei para negá-la abertamente em
nenhum de meus trabalhos acadêmicos mais difundidos. Seria, para mim, um
desserviço imenso, além de um grande inconveniente, se chegasse porventura aos
ouvidos errados.
Peço, portanto, perdão pela minha digressão,
mas esclareço-a: o direito de ler este tomo restringe-se só e somente só à
minha pessoa.
Caso já tenha cometido o erro
de começar, saiba que meus aposentos estão sob o efeito de barreiras mágicas,
dentre elas – mas não somente - a Clave Regia, o Claustro de Thalmud e o
Labirinto Dedálico.
Aproveite, portanto, seu tempo.
A crença se trata de um dado
memético repetido desde, suponho, a Idade Média:
Humanos não possuem talentos
mágicos inatos.
Além de minha crença no poder
inato ao ser humano ser antiga, e advinda de uma série de casos isolados que
tratei ao longo dos anos no Hospital, um caso em particular reforçou minhas
pesquisas
No século XVIII fui compelido a
fazer uma visita a um pequeno vilarejo a duas horas do Condado de
Gloucestershire na Inglaterra, onde haviam sido encontradas no espaço de dois
anos três vítimas de Esquizofrenia por Hipersensibilidade Sensorial, um caso
grave de Thelemania (perda do controle sobre os próprios poderes) que custou à
vítima toda a sua família e sua criação de gado – todos assolados por uma nevasca
totalmente fora de época, que além de ter congelado os bovinos mais próximos à
sua residência, queimou o terreno por milhas e fez com que os demais morressem
de fome e frio – e, descoberto depois de alguma pesquisa, seis combustões
espontâneas, além de um sem número de desaparecimentos ao longo das décadas.
Neste lugar, com a ajuda de um estudioso da metodologia de busca do baculus divinatorius, fui capaz de
encontrar uma confluência de linhas telúricas.
Estas apresentavam, localmente,
toda a coerência de linhas telúricas naturais. Porém, não me contentei. Consegui
acesso ao acervo pessoal do Visconde, que se provou ser muito solícito. Nele
encontrei um volume do século XIV – assinado por um E. Vyzart, cujo brasão
tomei nota para futura pesquisa -, que retratava todo o mapa telúrico da
região. Enviei meu assistente, Beric, à biblioteca nacional em busca de outros
manuscrítos que pudessem confirmar que esse documento era preciso, enquanto
comparava a diferença das linhas.
Recorri aos meus humildes conhecimentos
da Linha do Sepulcro e fui muito bem sucedido ao descobrir um espírito atado a
um abeto no local.
Transcrevo,
agora, as palavras que ouvi ao forçar uma conexão com o eco:
“Os que se afastaram do abraço da
vida, que agora temem as vias misteriosas do universo, nos acusam de
assassinas, idólatras e indignas. Sua ignorância e negligência alcançam agora
nossa paz, e a despedaça com garras de horror e repulsa.
Derramando óleo no fogo, deixando
que nossa carne evapore, podemos ouvir em suas vozes ensandecidas que irão
abrir a represa, e deixar que a água leve nossos lares. Deixem que gritem seu
mantra fulgurante com a confiança dos tolos, pois seremos nós as libertas!
Deixem que nos rebaixem a párias
até que nossos corpos sem vida se partam. Caso realmente aconteça, estará
cumprido nosso dever. Ficará apenas a amarga bruma da profecia imposta.
Quando o sétimo filho do sétimo
filho nascer ele trará com ele uma nova alvorada.”
A cena pré-datava o conhecimento mágico formal de
hoje, que é difundido pelos humanos. Pré-datava a Rosa-Cruz, o incidente de
Salem em 1692 e até mesmo a primeira publicação do Malleus Maleficarum.
Semanas depois Beric retornou
com dois outros manuscritos confirmando minha teoria de que a disposição das
linhas telúricas havia sido pesadamente alterada, chegando a afetar áreas
próximas à Cheltenham e grande parte de Stroud.
Não haviam no local selos
druídicos, runas futhark ou qualquer tipo de alfabeto que remetesse a outros
planos, nenhuma configuração cabalística, ou qualquer tipo de selo para invocar
divindades.
Havia apenas um desenho
ininteligível – algo totalmente desprovido de significado e que, se me é
permitido presumir, estaria para qualquer sistema mágico de signos como a
idioglossia está para a linguágem. Porém, era sofisticado, ou ao menos
racional, pois seu traçado fazia com que a energia em fluxo pelas linhas
telúricas confluísse, sem pressupor nenhuma conexão com entidades conhecidas.
Aparentemente seu objetivo era concentrar a energia sem empurrá-la ou
absorvê-la, como é ensinado hoje em dia.
Isso me leva a minha tese: os
humanos de hoje são apenas sucessores falhos dos humanos da antiguidade. Cópias
incompletas e presunçosas.
Os que conseguiram reconquistar
sua autarquia conseguem abrir portas tão grandes que muitos podem enlouquecer –
como foi o caso dos três esquizofrenicos retirados e levados ao Hospital – caso
não haja o intermédio de uma força maior, ou de um mentor.
No primeiro capítulo de minha
tese analisarei o selo e as palavras do ritual que presenciei na minha
regressão ao abeto, e também a distorção efetuada nas linhas telúricas.
No segundo capítulo
apresentarei os artefatos encontrados na subsequente escavação que foi iniciada
pelo Sr. Koganei.
No terceiro e último capítulo,
retomarei a tese desenvolvida em meu
livro Caíndo Longe da Árvore,
a respeito da genealogia de espécies mágicas para apresentar uma teoria a
respeito da ausência de limites para os poderes mágicos dos humanos.
Humanos – pobres humanos,
odiados por demônios, apadrinhados por anjos, cobiçados por vampiros – podem
ser muito mais do que parecem. Podem ser o que quiserem.
-Excerto do livro Davi e Golias: Um
Ensaio Sobre Presunção
Escrito por Andrik Sardu
2 comentários:
Mais um para a biblioteca do Mr. D!
Adoro seus textos científico-mágicos. A argumentação deles é sempre deliciosa e inteligente e eu sempre me pego quase enredada nelas!
Quando eu precisa escrever sobre um arqui-mago, vou te encher o saco pra me ajudar!
Tá avisado!
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